ONU 2017: Rússia e Lavrov: o antônimo da Doutrina Trump

Caros leitores e ouvintes do Xadrez Verbal, ontem, dia Dezenove de Setembro de 2017, iniciou-se mais um Debate Geral da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Buscando retomar o trabalho que foi realizado aqui nesse espaço nos anos de 2013, 2014 e 2015, farei uma cobertura especial dos principais discursos e temas abordados pelos líderes mundiais perante a comunidade internacional. Tudo será compilado em uma categoria especial, tal qual nos anos citados; infelizmente, em 2016, não consegui executar essa cobertura especial.

Eu firmemente acredito que estar bem informado sobre a comunidade internacional é essencial nos tempos que vivemos, e uma ótima circunstância é a AGNU, quando cada país expõe as suas pautas, as suas prioridades e interesses. Os discursos devem ser vistos sempre com um olhar crítico, mas são sempre reveladores. A cobertura é de especial interesse para alunos de cursos como Relações Internacionais e similares, claro; se for seu caso, não esqueça de divulgar os textos.

Seguimos essa cobertura com o discurso da Rússia. Amanhã teremos mais, logo na manhã.

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RÚSSIA E LAVROV: O ANTÔNIMO DA DOUTRINA TRUMP

No primeiro texto sobre discursos do segundo dia do Debate Geral da 72ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, a fala de Sergei Lavrov, Ministro de Relações Exteriores da Rússia, foi o antônimo da fala de Trump, já analisada aqui. O recado foi claro. Criticou “países” que querem “dominar assuntos globais e impor modelos de desenvolvimento” assim como seus próprios “valores” (aspas presentes no original), movidos pela lógica da unipolaridade. A mesma lógica apontada no discurso de Trump. De forma irônica, elogiou o discurso de Trump e afirmou que ele apontou questões essenciais e que qualquer país assinaria aquelas palavras, “se a política externa dos EUA fosse conduzida precisamente por essas bases”.

Lavrov em todos os momentos, como de se esperar, defendeu e justificou a política externa russa, colocando que ela age sob os princípios de não-intervenção e soberania, apontando a contradição no outro. Em outras palavras, deixou implícito que as contradições russas seriam como reação ao comportamento contraditório do Ocidente. O mesmo discurso quando da anexação da Crimeia, quando foi apontado um precedente ocidental no caso de Kosovo. A ironia de Lavrov chegou até em Francis Fukuyama, o cientista político célebre pela sua polêmica (e totalmente falha) tese do “fim da História”. Ao citar o comportamento russo: “Isso não foi reciprocado pelos nossos parceiros Ocidentais, super agitados pela ilusão de “fim da História” e buscando acomodar instituições rudimentares da era de confronto bloco-a-bloco para as realidades modernas”.

Muitas das críticas de Lavrov foram sobre a OTAN e sua expansão ao leste, que teriam encorajado sentimentos anti-Rússia; é necessário lembrar que, por exemplo, nos países Bálticos, o sentimento anti-Rússia antecede a OTAN. Lavrov afirmou que o Ocidente estrutura sua política no princípio de “quem não está conosco, está contra nós”, alusão ao discurso de George W. Bush pós-11 de Setembro de 2001, que inspirou até falas em filmes da série Guerra nas Estrelas. Também alfinetou Trump, afirmando que é um ultraje usar “liberdade de expressão como desculpa para apoiar movimentos radicais que professam ideologias neo-nazistas”, referência aos protestos em Charlottesville. Nesse teor, defendeu o legado soviético e criticou a derrubada de estátuas dos “libertadores da Europa e heróis da Segunda Guerra Mundial”, que seria “tolerada pela Europa civilizada”. Referia-se contra a derrubada de estátuas soviéticas pelo leste europeu.

O teor geral foi o de defesa do multilateralismo e da globalização. Nos casos específicos, a defesa dos interesses russos e a crítica do que é visto pela Rússia como ações unilaterais dos EUA. As sanções dos EUA ao Irã seriam ilegítimas e minariam o acordo com o país; o fracasso de sanções unilaterais poderia ser visto no exemplo de Cuba, apesar dos pedidos da comunidade internacional; instigar problemas em nome de uma “suposta democratização” da Venezuela, afirmando que em qualquer conflito interno a comunidade internacional deve focar seus esforços em reconciliação; esse seria também o elemento para solução de questões como o Iêmen.

Sobre o Oriente Médio, Lavrov colocou que o problema do extremismo disseminado e das ondas de refugiados é causado pelas intervenções unilaterais e ações agressivas do Ocidente, “ações aventureiras para mudança de regimes considerados indesejados”. Citou especialmente Líbia e Síria, tema em que comentou as conversas de paz em Astana. Além disso, Lavrov afirmou que a luta contra o Daesh é importante, mas também deve ser a luta contra a al-Nusra, que por “alguma razão é tolerado pelos EUA e seus aliados”; a al-Nusra é o nome anterior do Fateh al-Sham, considerado o braço sírio da al-Qaeda. Lavrov também colocou a Rússia como favorável ao diálogo entre Israel e Palestina, agradeceu os esforços egípcios e declarou apoio à Iniciativa Árabe para a Paz.

Sobre o tema mais quente, a Coreia do Norte, Lavrov “condenou absolutamente” as “aventuras com mísseis nucleares” do regime, que violam sanções da ONU, mas também a “histeria militarista”, colocando que não há caminho senão a negociação. Em suma, Lavrov defendeu, em todos os tópicos, posturas multilaterais. A postura de Lavrov não nega suas contradições, se defende apontando que ela se contradiz pois o seu adversário o faz primeiro; o que, talvez, não tenha diferença. Seu encerramento falou em melhoria da governança global, o tipo de expressão que não é apropriadamente compreendida e causa calafrios nos nacionalistas adeptos de Trump. Lavrov colocou a questão até em escala da humanidade: “É óbvio que, no futuro, o mundo irá enfrentar uma nova gama de desafios de longo-prazo afetando nossa civilização. Nós não temos direito de gastar nossa energia, tempo e esforços em jogos geopolíticos. Isso exige uma abordagem coletiva, não unilateral”. Uma abordagem paradoxal, já que vem de alguém que domina, como poucos, o jogo geopolítico.

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O texto sobre o discurso da Turquia está aqui; o de Israel pode ser lido aqui; o dos EUA está aqui.

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Os discursos podem ser lidos, ouvidos e assistidos, na íntegra, no site do Debate Geral.

Os áudios são disponibilizados no idioma original e nos seis idiomas oficiais da ONU; ou seja, uma boa oportunidade também para praticar o aprendizado de línguas.

Caso o leitor fique com dúvidas ou interesse especial, recomendo sempre consultar o discurso original na íntegra.

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Caso queiram consultar as coberturas especiais dos anos anteriores, assim como outras categorias especiais de textos, estão aqui.


assinaturaFilipe Figueiredo é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.


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