ONU 2017: Realismo, Idealismo e a Doutrina Trump

Caros leitores e ouvintes do Xadrez Verbal, ontem, dia Dezenove de Setembro de 2017, iniciou-se mais um Debate Geral da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Buscando retomar o trabalho que foi realizado aqui nesse espaço nos anos de 2013, 2014 e 2015, farei uma cobertura especial dos principais discursos e temas abordados pelos líderes mundiais perante a comunidade internacional. Tudo será compilado em uma categoria especial, tal qual nos anos citados; infelizmente, em 2016, não consegui executar essa cobertura especial.
Eu firmemente acredito que estar bem informado sobre a comunidade internacional é essencial nos tempos que vivemos, e uma ótima circunstância é a AGNU, quando cada país expõe as suas pautas, as suas prioridades e interesses. Os discursos devem ser vistos sempre com um olhar crítico, mas são sempre reveladores. A cobertura é de especial interesse para alunos de cursos como Relações Internacionais e similares, claro; se for seu caso, não esqueça de divulgar os textos.
Seguimos essa cobertura com o discurso dos EUA. Ainda hoje teremos mais textos.
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REALISMO, IDEALISMO E A DOUTRINA TRUMP
O terceiro texto sobre os líderes mundiais que falaram no primeiro dia do Debate Geral da 72ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas é sobre talvez o discurso mais aguardado e mais discutido, o primeiro de Donald Trump como Presidente dos EUA. Seu discurso teve cerca de quarenta minutos e teve um foco principal: a defesa do modelo de Estado-nação em uma perspectiva soberanista e nacionalista. Praticamente todos os aspectos do discurso, em essência, remetem ao tema. Trump destacou sua política externa de “Realismo com princípios” (Principled realism, também chamada de Doutrina Trump, na tradição da política externa dos EUA), uma mistura das duas principais correntes, opostas, das relações internacionais, o Realismo e o Idealismo; o jogo de palavras, entretanto, é apenas isso, pois se trata do bom e velho Realismo, envernizado com cargas ideológicas e maniqueísmo.
A defesa de Trump do modelo do Estado-nação Não se trata de mera interpretação, fica clara em alguns trechos. Talvez o principal, de todo o discurso: “Como Presidente dos EUA, eu sempre colocarei a América (sic) em primeiro lugar, assim como vocês, como líderes de seus países sempre irão, e sempre devem, colocar seus países em primeiro lugar. Todos os líderes responsáveis possuem uma obrigação de servir seus próprios cidadãos, e o Estado-nação continua o melhor veículo para elevar a condição humana”. Independente do leitor concordar ou não com essa perspectiva unilateral, uma coisa deve ser elogiada: Trump delineou sua política externa e a base ideológica dela de forma clara e explícita. Sem discursos protocolares, o estilo direto já conhecido de Trump.
Também esteve presente o populismo de Trump, ao afirmar que ele foi eleito não para “se empoderar, mas para dar poder ao povo americano, onde ele (o poder) pertence”; em determinados momentos, flertou com a ideia de “devolver” o poder, como se usurpado do povo, parte dos seus discursos de campanha. Trump sabia também onde estava, e que uma defesa ao menos implícita do multilateralismo era necessária. Tanto que o trecho acima é seguido por: “Fazer uma vida melhor para nosso povo também requer que trabalhemos juntos em harmonia e unidade para criar um futuro mais seguro e pacífico para todas as pessoas”. Se o foco do discurso foi a defesa do Estado-nação, seu tom foi de pequenos acenos ao multilateralismo.
Nesse teor, reafirmou o papel da ONU de defender a segurança e a prosperidade; e que ela foi criada pelo “crédito eterno do caráter americano”, que não expandiu seu território após a guerra mais sangrenta da História, mas construiu instituições “como essa”. Destacou missões de paz da ONU e da União Africana, assim como o apoio de António Guterres na reforma da ONU; simultaneamente, criticou a presença de governos com retrospecto deplorável no Conselho de Direitos Humanos e o peso financeiro da ONU aos EUA. Segundo Trump, seu país é um dos 193 países da ONU, mas paga por 22% do orçamento e ainda mais; a cifra está correta e, de fato, os EUA contribuem ainda mais, com o funcionamento de agências e missões. É de bom tom lembrar, entretanto, que o cálculo é feito baseado levando em conta o tamanho da economia e o tamanho da participação de cada país. Um cálculo acordado com liderança dos EUA.
Esse alicerce do discurso de Trump seria elevado no encerramento. Criticou “acordos comerciais multinacionais paquidérmicos”, “incontáveis tribunais internacionais” e “poderosas burocracias globais”. Defendeu o patriotismo, elogiando essa característica em britânicos, poloneses e franceses durante a Segunda Guerra Mundial; muito provavelmente, se os resultados das últimas eleições nos Países Baixos fossem outros, favorecendo o candidato “soberanista”, também seriam citados. E uma defesa menos conveniente do que seja patriotismo para Donald Trump incluiria, no mesmo conflito, Alemanha e União Soviética. Ainda em seu encerramento, Trump conclamou por um “grande redespertar de nações” e citou o ex-Presidente dos EUA Harry Truman por duas vezes. Curiosamente, Truman é um dos mentores da ordem internacional que desperta náuseas na base ideológica e eleitoral da presidência de Trump.
Falando de outros países e regiões, Trump afirmou que é necessário rejeitar ameaças para a soberania, “da Ucrânia ao Mar do Sul da China”, referências claras aos pontos de tensão com Rússia e China, respectivamente. Os dois países receberam, posteriormente, agradecimentos, por terem votado por sanções contra o “regime pária” da Coreia do Norte. Parte de destaque do discurso de Trump foi sobre a Coreia do Norte. Citou a brutal e trágica morte do universitário Otto Warmbier, que foi entregue da custódia pelo regime norte-coreano em coma e faleceu poucos dias depois. O trecho que acabou viralizando nas redes sociais foi quando Trump se referiu ao líder da Coreia do Norte não pelo seu nome, mas como “Rocket Man”, “Homem do foguete”. “Os EUA possuem grande força e paciência, mas se for forçado a defender a si ou aos seus aliados, não teremos escolha senão destruir totalmente a Coreia do Norte. Rocket Man está em uma missão suicida para ele e para seu regime”.
No continente americano, Trump criticou o “corrupto e desestabilizador” regime cubano e afirmou que seu governo colocou sanções “duras e calibradas” contra o “regime socialista Maduro”, citando pelo nome, na Venezuela. Nesse trecho, Trump fez críticas ao socialismo, afirmando que ele destruiu uma “nação próspera” e que “O problema na Venezuela não é que o socialismo foi mal implementado, mas que o socialismo foi fielmente implementado”. Também afirmou que “A América (sic) permanece com cada pessoa vivendo em um regime brutal”. Vamos então ao Oriente Médio. Trump criticou o conflito na Síria e o brutal regime de Assad (a outra pessoa que é citada nominalmente no discurso). Criticou pesadamente o Irã, seus discursos de destruir os EUA e Israel, e criticou o acordo nuclear feito com o país; entretanto, sua Secretaria de Estado, por duas vezes, afirmou que o Irã está cumprindo o que foi acordado.
Elogiou e agradeceu Jordânia, Turquia e Líbano pelo seu papel em receber refugiados, afirmando que, com o custo de assentar um refugiado nos EUA, o país poderia assistir mais de dez em seus países de origem. Afirmou que a luta contra o Daesh, no Iraque e na Síria, tem avançado e que “nosso país realizou mais contra o ISIS (Daesh) nos últimos oito meses do que nos vários, vários anos anteriores combinados”. Considerando a escalada da presença russa na região e as perdas territoriais do Daesh, a comparação não é totalmente apropriada ou verdadeira. Trump afirmou que é hora de “expor e responsabilizar” os países que apoiam e financiam grupos terroristas como al-Qaeda, Hezbollah, o Talibã e outros. Perfeito. No caso do xiita Hezbollah, seu principal financiador é o Irã. E no caso dos sunitas al-Qaeda e Talibã? Os principais indícios, moderando as palavras, levam ao país que recebeu a primeira visita de Trump na presidência, a Arábia Saudita.
Não se trata aqui de comentar uma relação política ou o desejo por uma simetria que jamais existiu em alianças internacionais, mas de mostrar a contradição nas próprias palavras de Trump. Se tem uma pessoa que pode expor quem financia os grupos fundamentalistas sunitas, essa pessoa é quem estiver no cargo de Presidente dos EUA. A contradição não acaba aí, e beira a hipocrisia. Trump afirma que o Irã alimenta a guerra civil no Iêmen, que compromete a paz em todo o Oriente Médio, e elogiou as missões da ONU para a catástrofe humanitária iemenita. O país que está bloqueando fronteiras e realizando cercos que causa epidemia de cólera e a fome é a Arábia Saudita. O país que controla o espaço aéreo iemenita e ataca a população civil é a Arábia Saudita. Aviões iranianos não operam na região, tampouco os rebeldes xiitas possuem uma força aérea capaz.
Finalmente, outros temas abordados por Trump foram, na abertura, os furacões que atingem seu país, agradecendo pela solidariedade internacional. Anunciou um orçamento militar de 700 bilhões de dólares, também na abertura; nesse caso, é o proposto pelo Executivo, o tema ainda precisa passar pela câmara baixa do Legislativo. Também fez um breve retrospecto do seu governo até o momento, destacando pontos positivos na economia, como o recorde da bolsa de valores de Nova Iorque, que “temos mais pessoas trabalhando nos EUA do que nunca” e que “uma criação de postos de trabalho como nosso país não vê desde muito tempo”. Essas duas últimas afirmações são discutíveis. Entre 1985 e 2009, proporcionalmente, haviam mais pessoas trabalhando nos EUA do que hoje; atualmente, o número bruto é maior, dado o crescimento populacional. E para os primeiros oito meses de um presidente no cargo, o governo Trump viu uma criação de postos de trabalho menores do que o governo Obama nos anos de 2011 e de 2013-2016. O curioso é que o desempenho econômico do governo Trump é de fato bom, não existiria necessidade de exageros. O que mostra bem o estilo de Trump ao falar, seja de economia ou sobre o Rocket Man.
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O texto sobre o discurso da Turquia está aqui; o de Israel pode ser lido aqui.
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Os discursos podem ser lidos, ouvidos e assistidos, na íntegra, no site do Debate Geral.
Os áudios são disponibilizados no idioma original e nos seis idiomas oficiais da ONU; ou seja, uma boa oportunidade também para praticar o aprendizado de línguas.
Caso o leitor fique com dúvidas ou interesse especial, recomendo sempre consultar o discurso original na íntegra.
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Caso queiram consultar as coberturas especiais dos anos anteriores, assim como outras categorias especiais de textos, estão aqui.
Filipe Figueiredo é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.
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