A serpente colocará mais um ovo?

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Ontem, Barack Obama, Presidente dos Estados Unidos, deu uma declaração sobre o Estado Islâmico do Levante, tratado aqui nesse espaço em outra ocasião. Seu pronunciamento pode ser dividido em três partes. Uma, extremamente acertada. Outra, um discurso para “consumo interno”. Finalmente, uma terceira parte, que pode iniciar um novo processo dos EUA na região do Iraque. Um processo falho e um erro que pode, novamente, botar o ovo da serpente no Oriente Médio.
Caso o leitor queira, pode ler, na íntegra e em inglês, o pronunciamento de Obama; caso prefira, pode ler, em português, uma reportagem sobre o tema. A parte acertada do discurso é quando Obama afirma que o que ocorre na região do Iraque e do leste da Síria não é nem “um Estado” nem “islâmico”. Obama afasta qualquer possibilidade de legitimidade ou reconhecimento de autoridade territorial dos grupos extremistas. E, em uma tacada, afasta também a ideia de um “choque de civilizações”, como diria Samuel Huntington. Coloca, ao menos de sua parte, que não é um conflito contra o Islã ou uma cruzada religiosa.
A parte acertada do discurso, entretanto, possui duas possíveis contradições. A primeira é que, embora o califado autoproclamado não possua legitimidade internacional, ele certamente recebe apoio estrangeiro. Afinal, são bem armados e não teriam motivos para tomar refinarias de petróleo sem poder escoar essa produção. Os indícios levam o centro desse apoio estrangeiro à monarquia saudita. Um dos principais aliados dos EUA na região e que conta com grande complacência do país americano. A outra possível contradição é a constante diferenciação entre sunitas e xiitas no discurso de Obama; deixar diferenças religiosas e étnicas de lado seria mais produtivo, pensando no recado almejado.
A parte do discurso interno é a conexão com os eventos de Onze de Setembro de 2001, já que o discurso foi na véspera do aniversário dos ataques. Em meio ao tom emocional e de superação de dificuldades e sacrifícios, Obama afirmou que nada aponta que os extremistas pretendem atacar os EUA. Usou a habitual retórica de que não se pode “permitir” que eles cresçam ao ponto de conseguirem algo do tipo e lembrou os jornalistas dos EUA que foram decapitados no Iraque; as imagens foram então divulgadas na internet, como forma de espalhar o terror e o medo.
Chegamos então ao erro de Obama. Mais um, se considerarmos a política externa de seu segundo mandato. Obama anunciou um plano de ação em quatro partes: Ataques aéreos concentrados na região do Iraque; o aumento do intercâmbio militar entre os EUA e o Iraque, com o envio de “consultores” para treinamento, como forma de ajudar o Iraque “fazer o que apenas eles podem fazer por si mesmos”; maior intercâmbio de inteligência; finalmente, o aumento de auxílio humanitário para os grupos perseguidos e para os refugiados do conflito.
Obama também falou em liderar uma “ampla coalizão” para combater os extremistas. Não deu detalhes de quais países comporiam essa coalizão; comenta-se até de uma relação com o Irã, além de Putin ter oferecido apoio russo. Em apenas um momento Obama citou as Nações Unidas, quando falou de uma região de emergência do Conselho de Segurança. Afirmou que não conta com o regime sírio de Assad, que tem “sangue nas mãos”. E por qual motivo tudo isso seria um erro?
Que os extremistas do califado devem ser combatidos, não há dúvidas. Carregam os estandartes de um radicalismo que foi considerado demais até pela Al-Qaeda e adotam métodos de barbarismo raramente vistos. Esse combate, entretanto, não deve e não pode ser resumido ao campo de batalha e às ações militares. Sem uma presença construtiva de longo prazo, liderada pelos vizinhos regionais, que apenas a ONU pode executar, tudo será efêmero. Dada a situação de total colapso econômico e social na região, uma abordagem de peace building (construção da paz, tipo de missão da ONU) é necessária. E a única possibilidade de paz na região.
Pode-se teorizar e analisar o que pode acontecer, entretanto, um breve olhar para a História demonstra o que foi descrito acima. O extremismo domina o leste da Síria e o norte do Iraque, aproveitando-se do apoio estrangeiro a uma luta interna síria e do vácuo de poder no Iraque. Vácuo de poder criado pela destruição do Estado iraquiano, pelos EUA, em 2003, mesmo contra a recomendação de diversos órgãos de inteligência. Um Estado autoritário e personificado em Saddam Hussein, que foi financiado e apoiado justamente pelos Estados Unidos no início da década de 1980.
O apoio dos EUA ao governo baathista de Saddam teve qual origem? A necessidade de estabelecer um governo árabe e secular no país. Para quê? Conter o possível avanço do extremismo após a Revolução Islâmica de 1979 no Irã. Originada na crise de identidade e de legitimidade do governo monárquico do Xá, alinhado com o Reino Unido e com os Estados Unidos. Ou seja, cada intervenção, direta ou indireta, do Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, é para combater o autoritarismo e o extremismo. Que surgiu ou se fortaleceu justamente em uma intervenção anterior. Sob o pretexto de destruir a serpente ainda na casca, acaba-se colocando mais um ovo.
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