Brasil, Hamas e Israel: bobo, feio e cara de melão

Caros leitores, garanto que o texto de hoje seria sobre outro tema. Talvez seja publicado mais tarde. Entretanto, devemos voltar ao tema do conflito na Palestina e a postura do governo israelense, dados os últimos acontecimentos. Não podemos pensar que “enjoou” ou coisa similar, isso seria uma forma de sensacionalismo, pautar a abordagem, ou não, de um assunto apenas pela frequência. Pois bem, ontem, o Itamaraty soltou uma nota “condenando energicamente” o uso de força desproporcional por Israel; além disso, explicitava o voto brasileiro sobre a resolução do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre o tema e declarava que chamava seu embaixador em Tel Aviv para consultas.

Chamar um embaixador para consultas é uma forma de reprimenda diplomática. Não se trata de romper laços entre os dois países, quem afirmou isso errou. Hoje tivemos a resposta israelense. A nota do governo israelense e o porta-voz de Israel chamou o Brasil de “anão diplomático”. Afirmou que o país escolheu “ser parte do problema, em vez de integrar a solução”. A atitude brasileira “não reflete” o nível das relações bilaterais e “ignorar o direito de Israel de se defender”; “Israel espera apoio de seu em sua luta contra o Hamas, reconhecido como uma organização terroristas por muitos países”.

Antes de analisar se essa resposta foi apropriada, vamos a um esclarecimento e uma referência. O esclarecimento é sobre o Hamas. Muita gente comentou que a última nota do MRE não mencionou o Hamas; leitores também comentaram que eles não foram citados no último texto sobre o tema. Sobre a ausência do Hamas na nota do MRE, na semana passada, o Itamaraty, em outra nota sobre o tema, afirma que “condena, igualmente, o lançamento de foguetes e morteiros de Gaza contra Israel.”. Dada que, nesses sete dias entre uma nota e outra, a situação escalonou apenas na capacidade militar israelense, não é necessário repetir uma condenação já feita, apenas abordar os novos acontecimentos. Chega a ser má-fé ver que alguns colunistas ignoram essa informação e acusam o MRE de “tomar um lado”.

Aqui nesse blog, o Hamas não é considerado representante soberano do povo palestino. O Hamas, aqui nesse blog, é e será considerada uma organização que não pode participar de um processo de paz duradouro até a revogação ou mudança de sua Carta de 1988; na Carta, o Hamas explicita que Israel não pode existir, e não se pode concordar com isso. Além, reconhece-se que o Hamas distanciou-se da Carta, repudiada como “história” inclusive por alguns de seus líderes; mas ela ainda está presente e, até o momento, é o documento que fundamenta a existência da organização. Sobre o “reconhecimento do Hamas como organização terrorista”, evocado pelo governo israelense, deve-se lembrar de que diversos países diferenciam o partido político Hamas da organização militante Hamas, as Brigadas Izz ad-Din al-Qassam.

Países como Austrália, Noruega e Reino Unido reconhecem o partido político e condenam apenas o braço armado como terrorista. Finalmente, merece uma reflexão como o radicalismo sobrevive em Gaza e não na Cisjordânia. Será que é porque as condições de vida em um dos territórios, Gaza, são muito piores? E tais condições são justamente criadas por Israel, com o bloqueio por terra e por mar de Gaza, que impede a economia local e faz os locais serem dependentes da ajuda de países como o Irã? Em total contraste com a Cisjordânia, que consegue ter certo desenvolvimento de forma autônoma, o que não alimenta o Hamas, favorece os setores moderados da Palestina e permite uma negociação de paz. Todos os últimos conflitos foram na região de Gaza, e, com raras exceções, são as condições radicais que criam movimentos radicais.

Agora, a referência. Recomenda-se fortemente a leitura, para quem puder, já que o texto está em inglês, do texto “The country that wouldn’t grow up” (“O País que não queria amadurecer”) do historiador, infelizmente já falecido vítima de uma doença degenerativa, Tony Judt. O texto, além de contar com a qualidade do autor (conhecido por diversos livros no mercado editorial brasileiro, como Pós-Guerra), relaciona-se ao “argumento” vazio também usado por aí, novamente, inclusive em colunistas de grandes veículos de comunicação. O suposto antissemitismo de quem critica Israel e acusado até na nota do MRE. Tony Judt era judeu. Defensor da existência do Estado de Israel. E a coluna citada está em um dos principais jornais israelenses, considerado até conservador, o Haaretz.

O artigo, de 2006, afirma em seu subtítulo que “aos cinquenta e oito anos de idade, Israel não tem amigos além dos EUA e suas reclamações de vitimismo e antissemitismo estão cada vez mais sendo ignoradas. Chegou a hora de amadurecer”. O texto faz uma figura de linguagem com o tempo de vida do Estado com as fases da vida humana, e classifica o comportamento de Israel como o de um adolescente, com uma irritadiça confiança em sua singularidade, uma autoestima insegura, rápido em se ofender e ofender de volta. Agressivamente e afirmativamente convencido de que pode fazer o que quiser, sem consequências. As transformações sociais e conquistas econômicas do país não se transformaram em sabedoria política. Um país alheio ao mundo que o rodeia.

Oito anos depois, o governo de Netanyahu dá mais uma demonstração disso. No Conselho de Direitos Humanos da ONU, foi adotada, ontem, resolução sobre o conflito em Gaza que busca investigar o cumprimento da lei internacional na região. Apenas um voto contra, o dos EUA. A Europa se absteve, o que é uma condenação tácita. O continente americano, exceção aos EUA, votou favoravelmente, incluindo a Costa Rica, maior IDH das Américas Central e do Sul, assim como Chile, Peru e México, frequentemente evocados como vizinhos exemplares por colunistas supostamente liberais.

Um adendo. O Hamas não é um Estado, não é uma organização com legitimidade internacional. Não pode ser objeto de uma resolução exatamente por isso; não se espera que uma organização militante vá seguir procedimentos de lei internacional. É tão óbvio quanto a fiscalização dos agentes do Estado para que sigam os procedimentos legais, não incorrendo em torturas ou barbarismo. A condenação de uma organização como terrorista é de autonomia nacional, mas não se pode cobrar as regras de alguém que não se espera que as cumpra. Cobra-se de quem age de forma incompatível sob uma autoridade legítima.

E qual foi a reação de Israel? Ao se ver condenado e com sua autoridade moral esvaindo na opinião pública internacional, age justamente como o adolescente irritadiço. Em meio a palavras que tentam denotar diálogo (A atitude brasileira “não reflete” o nível das relações bilaterais; O Brasil é um gigante econômico e cultural), coloca-se como única vítima (“ignorar o direito de Israel de se defender”), age acuado de forma radical, como se quem não está com Israel está necessariamente contra Israel (o país escolheu “ser parte do problema, em vez de integrar a solução), aponta o dedo como a criança que diz que o outro que começou e, com chave de ouro, o porta-voz do Ministro de Relações Exteriores israelense, Yigal Palmor, chama o Brasil de “anão diplomático”.

Apenas onze países no mundo possuem relações com todos os membros da ONU, o Brasil é um deles. É parte essencial de diversos fóruns sobre a comunidade internacional, como o G4, que busca reformar o Conselho de Segurança da ONU, o G20, grupo das vinte maiores economias, além de diversos grupos dos países classificados como emergentes, como o IBAS e o BRICS. BRICS que fundou o Novo Banco de Desenvolvimento, o principal acontecimento no sistema financeiro internacional em setenta anos. Classificar o Brasil como “anão diplomático” demonstra que, oito anos depois, as palavras de Judt continuam atuais. Israel demonstrou ignorar o mundo ao redor e a necessidade de autoafirmação de um adolescente, mesmo quase septuagenário. Ter chamado o Brasil de bobo, feio e cara de melão teria sido mais apropriado.

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Para ler a nota do governo de Israel, na íntegra e em inglês, o leitor pode acessar aqui. Para ler as palavras de Yigal Palmor, a matéria original, em inglês, está aqui, no Jerusalem Post.

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