Revolução Alemã: a escolha dos males e a Constituição

Caros leitores, depois de um longuíssimo hiato, retomo a série de textos sobre a Alemanha no entreguerras. O primeiro texto foi publicado tem mais de seis meses, chamado As lições da História: Um aniversário sombrio, sobre o aniversário do Putsch da Cervejaria de Munique, em 1923, e o assassinato de Kurt Eisner. Qual o propósito dessa série? São diversos. Primeiro, minha formação é em História, mas, felizmente, também é minha paixão, e é um tema que me interessa escrever, sendo direto e reto. Existem outros motivos menos pessoais também. O primeiro é que, com esse olhar histórico, podemos fazer muitas análises sobre o presente; de certo modo, é o chavão “estudar a História para não repeti-la”.

Na perspectiva desse blog e desse autor, presenciamos, desde 2001, um momento muito parecido com o período entreguerras. Especialmente por uma crise financeira eclodir e alimentar uma série de radicalismos, seja na política nacional, seja na política internacional, como visto nas crises da Crimeia e na série de textos sobre as fronteiras invisíveis da Europa. O propósito do primeiro texto era exatamente esse, assim como será o de textos vindouros. Finalmente, o período do nazismo, o Estado do III Reich, é, até hoje, dos períodos mais polêmicos, que gera mais debate.

Todo mês temos alguma publicação nas bancas de jornal que fale em nazismo ou em Hitler, ou com a cruz suástica. Muitas vezes, o nazismo é usado como uma carta argumentativa, especialmente na internet. Temos até uma teoria sobre isso, a Lei de Godwin. Em qualquer discussão política, atualmente, se evoca o nazismo ou Hitler como exemplo da suposta falta de base do argumento contrário. E, muitas vezes, faz-se isso sem a compreensão do que significou o nazismo. Entramos então no terceiro propósito dessa série de textos, que é compreender as condições de surgimento do nazismo e da máquina do III Reich, antes da Segunda Guerra Mundial e antes do Holocausto.

Compreender a sociedade que formou, embasou e sustentou o regime. Para isso, não basta voltarmos, partindo de 1939, para 1934, com a Noite das Longas Facas, como alguns fazem. Também não basta voltar para 1933, com a ascensão política de Adolf Hitler. A compreensão do nazismo e de seu contexto remete ao século XIX, para a própria fundação de um Império Alemão liderado pela Prússia dos Hohenzollern. Somente assim sairemos de alguns lugares-comuns ou de anacronismos, como o que classifica o nazismo como um regime de esquerda, moda liderada pelos republicanos radicais dos EUA. Mas ainda chegarei lá.

O primeiro texto tratou de como um jovem, de origem aristocrática, foi defendido por um aparato conservador em um assassinato; sua postura foi até elogiada, já que o assassinado era de esquerda, o primeiro líder de uma Bavária republicana. O assassinato desencadeou uma crise que culminou na proclamação da República Soviética da Bavária, que teve vida curta. Todos esses episódios, porém, estavam um contexto mais amplo. A Revolução Alemã, às vezes tratada como Guerra Civil Alemã, conhecida em alemão como Novemberrevolution, que durou, aproximadamente, de Três de Novembro de 1918 até 11 de Agosto de 1919.

Cortejo fúnebre de mortos em combate durante a Revolução

Cortejo fúnebre de mortos em combate durante a Revolução

As hostilidades da Primeira Guerra Mundial acabaram oficialmente em 11 de Novembro de 1918. A crise do final da guerra, com seus desdobramentos políticos, econômicos, sociais e humanitários, causou o fim das monarquias alemãs e o colapso do Império. O Kaiser Guilherme II abdicou do trono imperial em Nove de Novembro de 1918. Na origem desses fatos está uma “simples” revolta dos marinheiros de Kiel, em 30 de Outubro de 1918. O comando da Marinha Imperial Alemã determinou, sem autorização do governo imperial, que a esquadra alemã zarpasse para uma última batalha “pela honra” contra a Marinha Real Britânica. Os marinheiros, já desmoralizados pela postura defensiva da marinha alemã desde a Batalha da Jutlândia, em Junho de 1916, se recusaram, na crença de que era um sacrifício fútil de vidas.

Os marinheiros tomaram comando de alguns navios, estabelecendo conselhos modelados no estilo dos sovietes russos. No dia quatro de Novembro, com cerca de quarenta mil marinheiros e trabalhadores navais mobilizados, a crise foi resolvida, com sete mortos. O sentimento de revolta e a falência do sistema e das forças armadas alemãs, entretanto, já tinham se espalhado em um rápido efeito-dominó. No dia sete de Novembro, Munique foi tomada pela revolta, causando o fim da dinastia Wittelsbach, como citado no texto anterior. Nos dias seguintes, o Kaiser abdicou, o armistício de Compiègne foi assinado, encerrando as hostilidades (formalmente, não foi uma rendição) e uma república foi proclamada, com um governo interino liderado por Friedrich Ebert, político do Partido Social-Democrata (SPD).

Conselho de Marinheiros amotinados em Kiel. Foto: Bundesarchiv

Conselho de Marinheiros amotinados em Kiel. Foto: Bundesarchiv

O governo interino durou, teoricamente, até o dia 11 de Agosto de 1919, com a promulgação da Constituição de Weimar (oficialmente, Constituição do Reich Alemão, que serviu de base para a Constituição Brasileira de 1934). Nos nove meses de período revolucionário, uma miríade de facções lutava pelo controle regional ou nacional. Uma série delas estava à esquerda do espectro político, outras na direita, algumas mais extremadas que as outras. No centro, o SPD e seus aliados do Partido Democrata Alemão (DDP) e do democrata cristão Zentrum. Os representantes da coligação partidária se consideravam o único governo legítimo, embora soubessem que poucos enxergavam neles essa legitimidade.

O que se seguiu foi um jogo de apaziguamento e de ampliação de apoio por parte do SPD. Apaziguamento, por exemplo, no acordo de Stinnes-Legien, de 15 de Novembro de 1918, em que os industriais cederam aos sindicatos em temas como jornada de trabalho e ordenados, em troca do esvaziamento dos Conselhos Operários e do abandono da proposta de nacionalização dos meios de produção. Ampliação de apoio ao assimilar as aristocracias do período imperial. O Império Alemão era composto de quatro reinos, seis grão-ducados, cinco ducados, sete principados e três cidades livres (cidades autônomas); boa parte do aparato estatal, especialmente o Judiciário, estava sob controle das famílias conservadoras das diversas nobrezas locais.

Ao concertar os grupos mais moderados, o SPD ainda tinha como eventuais rivais pelo controle os grupos extremados, revolucionários em sua essência. Na esquerda estavam principalmente a Liga Espartaquista, nomeada em homenagem ao gladiador Espartacus; o Partido Comunista alemão, que dividia sua origem com a Liga, mas teve uma atuação mais ampla; os movimentos comunistas bávaros, que culminaram na República Soviética da Bavária e, finalmente, a União Livre de Trabalhadores da Alemanha, movimento anarcossindicalista formado pelas dissidências sindicais revolucionárias em relação ao acordo de Stinnes-Legien.

Os grupos revolucionários de direita eram a Stahlhelm, organização paramilitar formada logo após a guerra, que reuniu segmentos das forças armadas descontentes com o processo de paz. Seus membros seguiam a ideia de que a guerra acabou por causa de uma “punhalada pelas costas” dos democratas e sindicalistas alemães, que falharam em manter a sociedade apoiando o exército. Sua orientação era a de tomada do poder para a restauração da monarquia Hohenzollern e retomada da guerra. Seu nome completo era Stahlhelm, Bund der Frontsoldaten, traduzido como “Capacete de Aço, Liga dos Soldados do Fronte”, numa clara alusão ao fato de seus membros serem ex-combatentes. Stahlhelm era o termo utilizado para o modelo do capacete pós-1916.

Além da Stahlhelm, existiam os diversos Freikorps, citados no texto anterior. Traduzidos livremente como Corpos Livres, no sentido de um corpo militar, variavam em intenções e tamanho. Vários tinham milhares de homens, como o Freikorps Epp. A maioria defendia a repressão dos movimentos de extrema-esquerda e a resistência contra movimentos locais e estrangeiros, como nos conflitos na fronteira com a Polônia. Além disso, defendiam a existência de um governo central forte e autoritário, a essência do que seria o nazismo. Vários membros do Partido Nazista fizeram partes de Freikorps, inclusive. Isso, entretanto, não era regra. O Freikorps Chiemgau, por exemplo, pretendia combater o comunismo bávaro para proclamar uma Bavária monárquica e independente, separada do restante da Alemanha.

Membros do Freikorps Maerker em combate, Janeiro de 1919, em Berlim

Membros do Freikorps Maerker em combate, Janeiro de 1919, em Berlim

O fato dos Freikorps terem sido tão amplos, assim como a Stahlhelm, se deve às condições da retirada do exército alemão da guerra. Não houve uma retirada organizada, feita de forma coordenada por um governo estabelecido. Pelo contrário, o final das monarquias viu um vácuo de poder, que causou uma retirada generalizada. Os soldados simplesmente voltaram para suas casas e suas cidades, portando seu armamento e sem muitas perspectivas na vida civil. Subitamente, dezenas de milhares de homens armados e com treinamento estavam na Alemanha, em meio a uma crise política. A formação de diversos grupos armados e paramilitares foi uma consequência quase natural.

Finalmente, o SPD conseguiu o apoio do comando central das forças armadas no Pacto Ebert-Groener, entre o citado Friedrich Ebert e Wilhelm Groener, intendente geral do Exército. Ebert garantiu que o prestígio do Exército seria mantido e que seu comando permaneceria nas mãos de um núcleo de oficiais de carreira; o Exército alemão continuaria a ser um “Estado dentro do Estado”, com a imensa autonomia e influência que gozava desde os tempos prussianos. A sociedade altamente militarizada e hierarquizada da Alemanha foi uma consequência disso, desde o século XIX. E essa sociedade militarizada desejaria um governo central autoritário.

Em contrapartida, Ebert garantiu a Groener que os movimentos de esquerda seriam reprimidos e que não permitiria uma “sovietização” das forças armadas, em que conselhos de soldados e marinheiros tivessem poder decisório, como na Rússia ou como no levante dos marinheiros de Kiel. Sendo assim, o restante do exército alemão, juntamente com os segmentos paramilitares citados, esmagou os incipientes movimentos revolucionários de esquerda. Tais eventos ficaram conhecidos como a Revolta de Janeiro. Em 15 de Janeiro de 1919, os dois principais líderes do Movimento Espartaquista e do Partido Comunista, Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht, foram capturados e executados por membros do Freikorps Garde-Kavallerie-Schützen-Division. Combates ocorreram principalmente em Berlim, Munique, Kiel e Hamburgo, e durariam pelos meses seguintes. Além dos combates, houve a repressão armada e violenta às greves gerais ordenadas pelos sindicatos e pela Liga.

Rosa Luxemburgo, que era descendente de judeus poloneses. Foto: Fundação Rosa Luxemburgo

Rosa Luxemburgo, que era descendente de judeus poloneses. Foto: Fundação Rosa Luxemburgo

No dia 19 de Janeiro, uma Assembleia Nacional foi eleita e constituída para a elaboração de uma nova Carta-Magna, que foi promulgada em 11 de Agosto de 1919, encerrando, oficialmente, o período revolucionário. Em 21 de Agosto de 1919, Ebert foi empossado como Presidente (Reichspräsident). Os combates e os conflitos da guerra civil, entretanto, não estariam encerrados. De 1919 até 1923, uma série de conflitos, levantes e tentativas de golpe ocorreriam. Embora Ebert tenha conseguido angariar apoio suficiente para o estabelecimento da República, ela era indesejada pela ampla maioria.

Ninguém apostava na sobrevida do regime democrático, e a imensa maioria dos interessados em estabelecer um regime autoritário tinha recebido a bênção do próprio Ebert. Pode-se dizer que Ebert “vendeu a alma”, pois, para estabelecer a República, alimentou aqueles que viriam a serem os carrascos desta. Escolheu um dos males, o que considerava menor, perto dos males do comunismo, e que permitiria angariar mais apoio. Um apoio temporário, apenas. A formalização do período revolucionário como entre 1918 e 1919 é justificada apenas pela adoção da Constituição de Weimar. O período revolucionário, do ponto de vista historiográfico, segue até 1923. Os eventos entre Agosto de 1919 e Novembro de 1923, quando acontece o Putsch da Cervejaria, serão tratados no próximo texto.

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6 Comentários

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  • Acácio Guimarães

    Sehr Gut

  • CARLOS EDUARDO BENTO DA SILVA

    “O Império Alemão era composto de quatro reinos, seis grão-ducados, cinco ducados, sete principados e três cidades livres (cidades autônomas)”. Felipe, isso tem alguma diferença (repercussão jurídica) ou são nomes diferentes para a mesma coisa… Todos eram unidades soberanas de poder? Vc quis dizer algo que ficou vago demais.

  • Maicon Quintanilha Diniz

    Excelente texto, não podemos esquecer que isso ocorre posteriormente a traição dos Sociais democratas que colocou fim à segunda internacional, antes de deflagrada a guerra apoiaram a preparação da empreitada beligerante da burguesia Alemã, com Karl Liebknecht sendo o único parlamentar a votar contra os créditos guerra. Rosa Luxemburgo ironicamente declara no congresso da internacional que segundo a tese que dos que viriam ficar no SPD, a partir de agora o chamado da internacional seria “Trabalhadores do mundo uni-vos, em tempos de paz, pois em tempos de guerra se matem”. Com esse episódio do texto coloca-se uma pá de cal em qualquer pseudo caracterização revolucionária dos social democratas, sob uma base de falsificação do marxismo, se é que honestamente ainda a tinham, todo comunista ou revolucionário que luta por uma mudança real da sociedade que emancipe os trabalhadores e dê a esses o poder político deve desconfiar dos Sociais Democratas, pois no momento decisivo eles tomarão o caminho manutenção de seus privilégios no capitalismo. Uma lição imprescindível nos tempos atuais.

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