O Putsch de Kapp e suas consequências

Caros leitores, hoje damos sequência aos textos da série sobre a Alemanha no período entreguerras, que buscam discutir o contexto histórico da ascensão do nazismo e se o regime pode ser enquadrado como “de esquerda”. No texto anterior, Revolução Alemã: a escolha dos males e a Constituição, paramos na promulgação da Constituição de Weimar, em Agosto de 1919. Hoje prosseguiremos com a recapitulação, tratando de evento político que, por diversas razões, não entrou para a História com a mesma força que o Putsch da Cervejaria, em Novembro de 1923 (marco temporal do fim do período revolucionário na Alemanha): O Putsch de Kapp. O período revolucionário será tema de mais textos na série, um tratando de eventos que relacionam a Alemanha ao exterior e suas fronteiras, e outro analisando eventos internos.
O Putsch-Kapp ocorreu em Março de 1920, como reação direta ao Tratado de Versalhes, assinado em Junho de 1919, que ditou as condições de derrota impostas à Alemanha. O Tratado foi assinado por Gustav Bauer, Chanceler alemão (o Chefe de Governo; Friedrich Ebert era o Presidente, Chefe de Estado), parte da coalizão de partidos sociais-democratas que formava o governo da República de Weimar. Os termos do Tratado de Versalhes eram considerados radicais, dentre eles: a Alemanha assumia total responsabilidade pela guerra, sofreria perdas territoriais, pagaria indenizações aos países aliados e teria suas forças armadas severamente delimitadas. O fato de o governo social-democrata ter aceitado tais imposições colaborou, e muito, para o fortalecimento do mito da “punhalada pelas costas”.
O mito, iniciado pelo general Erich Ludendorff, figura essencial para a compreensão da ascensão nazista, pode ser resumido em poucas palavras. Para os que compartilhavam dessa ideia, o exército alemão não foi derrotado na Primeira Guerra Mundial; o fato de que, quando a guerra acabou, as tropas alemãs estavam em território francês, além de ter derrotado a Rússia, seria exemplo disso. A Alemanha teria sido traída pela sociedade civil, especialmente pelos políticos que derrubaram a monarquia e pelos comunistas e sindicais que, ao ordenar e articular greves, prejudicaram o esforço de guerra alemão. O fato de que tais políticos aceitaram os termos de Versalhes seria a “prova conclusiva” dessa traição.
Além do descontentamento de setores mais radicais da sociedade com o governo social-democrata, o fato do Tratado de Versalhes impor a diminuição das forças armadas alemãs também gerou revolta e preocupação. Na véspera da assinatura, a Reichswehr, o exército regular de Weimar, contava com cerca de 350 mil homens; soma-se os cerca de 250 mil homens nas forças irregulares, já citadas aqui, os Freikorps. Versalhes determinava que as forças alemãs tivessem um máximo de cem mil homens. Ou seja, além de ser considerado (mais um) golpe no orgulho nacional alemão e interferência em uma das principais camadas da sociedade, muitos se viram diante da possibilidade de desemprego e inatividade.
Em 29 de Fevereiro de 1920, o Ministro da Defesa, Gustav Noske, do Partido Socialdemocrata, ordenou a dissolução de dois Freikorps, a Marinebrigade Loewenfeld e a Marinebrigade Ehrhardt. A Marinebrigade Ehrhardt era dos principais Freikorps, tendo participado dos principais eventos dos anos anteriores. Seus membros eram opositores do governo de Ebert e o grupo era visto como uma potencial ameaça ao regime republicano. Seu comandante, Korvettenkapitän Hermann Ehrhardt, recusou a ordem de dissolução. O elemento principal da crise aparece nesse momento. O general Walther von Lüttwitz, comandante do maior grupo da Reichswehr, a quem diversos Freikorps estavam subordinados, desafiou o governo de Weimar e declarou que não abriria mão da unidade.
Lüttwitz foi o real comandante do Putsch, referido muitas vezes como Putsch Kapp-Lüttwitz. Kapp se refere a Wolfgang Kapp, político nacionalista e um dos principais difusores da ideia de “punhalada pelas costas”. Foi fundador do Deutsche Vaterlandspartei (Partido da Pátria), ainda em 1917, que buscava aumentar a presença do nacionalismo e militarismo no governo. Em 1919 foi eleito para o Reichstag (Parlamento) como monarquista, pelo Deutschnationale Volkspartei, (Partido Popular Nacional Alemão, DNVP) embora seu apoio ao retorno dos Hohenzollern fosse mais simbólico do que concreto. Kapp era o mentor intelectual das forças políticas que viriam a apoiar o Putsch, comandado, na prática, pelo general von Lüttwitz.
Com a crise derivada da insubordinação, Lüttwitz foi ao encontro do Presidente Ebert com as exigências dos movimentos nacionalistas da direita. Dentre os itens, a dissolução do governo, novas eleições para o Reichstag, a dispensa do comandante do exército e a instauração de Lüttwitz no posto e a revogação das ordens para dissolução dos Freikorps. O governo rejeitou e Noske afirmou que queria a renúncia de Lüttwitz no dia seguinte. O general não apenas rejeitou a ordem como contatou Ehrhardt e o consultou quando conseguiria mobilizar seus homens e ocupar Berlim. A resposta foi Treze de Março.
Lüttwitz também contatou Kapp e Ludendorff, pedindo apoio e afirmando que, assim que o governo fosse deposto, eles deveriam estar prontos para assumirem os cargos e conduzir o processo rumo a um Estado autoritário, embora o formato desse autoritarismo ainda fosse incerto e o movimento não estivesse articulado. Na noite do dia Doze de Maraço, Ehrhardt ordenou que seus homens entrassem na capital e tomassem os prédios do governo, independente da resistência. Na madrugada do dia Treze, uma reunião do gabinete do governo determinou que as tropas do exército alemão deveriam resistir ao golpe. Os comandantes do Exército se recusaram e afirmaram que as tropas não iriam atirar “contra os camaradas com os quais lutaram contra um inimigo comum”. O gabinete de Ebert e Noske não tinha muitas possibilidades.
Os principais líderes do governo social-democrata fugiram de Berlim no amanhecer, primeiro para Dresden e depois restabelecendo o governo em Stuttgart, convocando uma “greve geral” de resistência contra o golpe. As tropas do Freikorps foram recebidas por Lüttwitz, Ludendorff e Kapp. No próprio dia Treze, Kapp se declarou Chanceler e que iria formar um governo provisório. Lüttwitz se proclamou comandante das Forças Armadas. A maioria dos comandantes do exército, da polícia e o comando da marinha reconheceram imediatamente a autoridade do governo provisório, aparentando que o golpe seria um sucesso. Boa parte do aparato burocrata, conservador e formado nos tempos da monarquia, aparentemente se alinharia ao lado dos golpistas.
A greve geral convocada pelo governo de Weimar, entretanto, atingiu enormes proporções. As classes trabalhadoras, os sindicatos e vários partidos apoiaram a greve que, calcula-se, mobilizou doze milhões de trabalhadores. O fornecimento de gás, água e energia foi praticamente interrompido. O governo interino não tinha como operar; uma anedota diz que ninguém ficou sabendo da convocação para novas eleições, já que os jornais estavam em greve, assim como os escreventes do governo. Quatro dias depois, no dia 17 de Março, o Putsch foi encerrado por negociações.
O bloco de centro dos quatro partidos sociais-democratas de Weimar concedeu mudanças no governo e anistia para os líderes. Lüttwitz e Kapp renunciaram; Lüttwitz foi aposentado com pensão integral e Kapp se exilou na Suécia. O novo comandante do exército seria Hans von Seeckt, que chefiou a insubordinação do dia Doze de Março, afirmando que as tropas alemãs não iriam disparar contra seus camaradas de Freikrops. Ehrhardt foi anistiado e foi para Munique. Em 1920, durante os julgamentos de crimes ocorridos durante o Putsch, o judiciário conservador puniria apenas um réu nos 705 processos.
Como analisar esses fatos? Aparentemente, a solução negociada após o fracasso do Putsch era a ideal. Pelo contrário. A direita conservadora e nacionalista notou que precisaria se articular mais e melhor, já que a precipitação das ações levou ao seu rápido colapso. O centro, dos sociais-democratas, sairia fragilizado e com uma impressão de fraqueza. Isso seria demonstrado nas eleições vindouras, em que o centro não conseguiria recuperar seus números. Finalmente, a esquerda sindical e comunista concluiu, do sucesso da greve geral, que seria a “sua vez” de tomar o poder, pois supostamente contariam com o apoio popular. No próximo texto, veremos como a esquerda e o nacionalismo alemão, separadamente, se radicalizaram em eventos relacionados ao fim do Putsch de Kapp.
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