Senso-comum: O voto dos pobres e dos nordestinos e a eleição de Dilma Roussef

Caros leitores,

Dou sequência aos textos sobre o senso-comum e a política no Brasil. O anterior foi sobre o Bolsa-Família. Mencionei, no texto sobre as cotas nas universidades, que existe o senso-comum de que Dilma Roussef foi eleita “pelos pobres”, ou pelo Nordeste, ou pelos beneficiados do Bolsa-Família (tratado no post anterior). Na época das eleições, chegou-se ao absurdo, por exemplo, do caso da jovem que, depois de divulgada a vitória de Dilma, postou em seu twitter coisas como “afogar nordestinos”, os supostos responsáveis pela vitória de Dilma, que representaria alguma ameaça, ou ofensa, para os supostamente ricos.

Novamente, faço a pergunta de ontem: essa ideia de que Dilma foi eleita pelos pobres resiste ao escrutínio mais profundo?

urna

Primeiro, deve-se fazer uma observação básica: a de que seria matematicamente impossível apenas a parcela pobre da população brasileira eleger o Chefe de Estado, já que, segundo a Cepal, são 21% da população. De qualquer forma, isso seria uma forma muito fria de abordar o assunto, então, vamos esmiuçar.

Os dados que seguem, quando eleitorais, são do Tribunal Superior Eleitoral e se referem ao segundo turno das eleições de 2010. Os dados socioeconômicos são ou do IBGE ou do PNUD.

Peguemos os cinco estados mais ricos do Brasil: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná. Somados, são um universo de 72.095.182 eleitores. Dilma teve 27.327.496 dos votos válidos, contra 26.418.091 de José Serra, uma vitória apertada de 50,84% para Dilma. Em número de estados, são dois com ampla maioria de Dilma, Minas Gerais e Rio de Janeiro, e três com vitórias de Serra, São Paulo, Rio Grande do Sul, vitória apertada, e Paraná, com vitória confortável.

Agora, e os cinco estados mais pobres? Roraima, Acre, Amapá, Tocantins e Piauí. Dilma teve 1.870.552 votos, contra 1.233.420 de José Serra, uma vitória da petista por 60,26%; mas, curiosamente, em números absolutos, Dilma teve 909.405 votos a mais nos estados mais ricos, comparados com os 637.132 votos a mais nos estados mais pobres. Em número de estados, são três com ampla vitória de Dilma e dois com ampla vitória de Serra, Acre e Roraima.

Isso leva ao primeiro argumento contra esse senso-comum: a má distribuição geográfica da população e desigualdade de renda torna impossível uma vitória de um candidato presidencial baseado apenas no eleitorado mais pobre, ou de estados mais pobres. Para somarmos os votos obtidos por Dilma apenas no estado de São Paulo (10.462.447), o mais rico e de maior população, teríamos que somar seus votos nos catorze estados mais pobres.  O fato de Dilma ter vencido com larga vantagem em três dos cinco estados de maior eleitorado (Minas Gerais, Bahia e Rio de Janeiro) e ter perdido por pouca margem nos outros dois, São Paulo e Rio Grande do Sul, explica muito mais sobre sua vitória do que o “voto dos pobres”.

Mas pode-se medir a riqueza de outras maneiras. E no caso do IDH, Índice de Desenvolvimento Humano? Os cinco estados com IDH mais alto são Distrito Federal, São Paulo, Santa Catarina, Rio de Janeiro e Paraná. Nesses cinco estados, a disputa fica em 20.254.510 votos para Dilma, contra 21.422.024 de Serra, uma vitória apertada de 51,4% do psdebista. Nos cinco estados com menor IDH, Alagoas, Maranhão, Pará, Piauí e Paraíba, o resultado é de 7.164.596 votos para Dilma, contra 4.064.982 de Serra, uma vitória de 63,8% para a atual Presidenta, em que se repete o cenário de uma vitória em números relativos, mas um número absoluto menor de votos.

Finalmente, o índice de alfabetização. Os estados com maiores índices de alfabetização são Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Distrito Federal. Nesse cenário, Dilma tem 20.779.185, contra 21.433.015 de Serra, outra vitória apertada de 50,77% de Serra. Nos estados com menores índices de alfabetização, Alagoas, Piauí, Paraíba, Maranhão e Rio Grande do Norte, o cenário é de 6.352.925 votos para Dilma, contra 3.154.554 votos para Serra, uma vitória de 66,82% de Dilma.

Pela riqueza regional, temos, em ordem de PIB, Sudeste, Sul, Nordeste (que não é a região mais pobre do Brasil), Centro-Oeste e Norte; dessas, Dilma venceu na região mais rica, o Sudeste, além do Nordeste e da região Norte. Exceção feita ao Nordeste, todas as porcentagens são apertadas, sejam em prol de Dilma, sejam em prol de Serra. Muito provavelmente essa larga vantagem de Dilma no Nordeste se deve às razões históricas de identificação da região com o Partido dos Trabalhadores; maior exemplo disso é a participação de Lula, pernambucano, ainda Presidente, na campanha de sua eventual sucessora.

O que se retira desses últimos três parágrafos? Que o voto dos estados mais pobres teve protagonismo em número relativo, sendo o “fiel da balança” de uma situação de vitórias apertadas, sejam de Dilma ou de Serra, nos estados mais ricos e mais populosos, que possuem eleitorado muito maior em valores absolutos. A explicação da vitória de Dilma Roussef está no fato de ela vencer com números confortáveis em estados ricos e populosos, como Minas Gerais, perder por margem estreita em outros estados ricos e populosos, como São Paulo, o que foi compensado pelo voto, menor em quantidade absoluta, dos estados pobres, mas de larga margem relativa.

Além disso, o voto muitas vezes não é partidário, não existe de forma abrangente um “eleitor fiel”, seja esse eleitor pobre, rico, nordestino, gaúcho, paraense, etc. Dos dezesseis estados em que Dilma foi vencedora, em apenas nove o Partido dos Trabalhadores fazia parte da coligação vencedora nas eleições estaduais. No caso de José Serra, dos onze estados em que o candidato foi vencedor, em apenas seis o PSDB esteve na coligação eleita. Isso demonstra como é complicado dividir o eleitorado brasileiro em blocos homogêneos, como se todos os pobres ou todos os mineiros votassem de determinada forma, o que também enfraquece o senso-comum aqui debatido.

Concluindo, Dilma Roussef não foi eleita pelos pobres ou pelos nordestinos. Melhor dizendo, foi eleita também pelos pobres e pelos nordestinos. Mas quase trinta milhões de seus votos, mais da metade de seus 55.752.529 votos, 56,05% do total das eleições, estão em apenas cinco estados, os mais populosos e dos mais ricos (a Bahia é dos cinco mais populosos, e oitavo mais rico). Foi o “bloco dos indecisos”, a classe média e classe média baixa, seja ela “velha” ou “nova”, urbana e alfabetizada, o eleitorado tradicionalmente ligado ao PSDB ou ao PMDB, que elegeu Dilma Roussef.

*****

Como sempre, comentários são bem-vindos.

Acompanhe o blog no Facebook e no Twitter e receba notificações de novos textos e posts, além de outra plataforma de interação, ou assine o blog com seu email, na barra à direita da página inicial.

8 Comentários

  • Olá, voltei. Concordo plenamente com o texto. essa história de “candidato dos pobres” e “candidato dos ricos” é conversa eleitoral, alimentada, muitas vezes, por interesses regionais eleitoreiros e, em alguma dimensão, pelo discurso eleito pelo ex-presidente Lula que sempre se autodenominou “candidato dos pobres”, mas que só chegou ao poder quando se acertou também com os por ele denominados “ricos”.
    O fato é que a eleição de Dilma no Brasil se deu por diversos fatores, em diversos cenários regionais distintos. O fato é que o PT, dentre os partidos brasileiros, é o que tem um público fiel e estabelecido, que gira, historicamente, em torno de 30% no Brasil (o que não elegeria um candidato em eleições majoritárias), e as condições específicas de cada eleição e cada região faz com que esse número seja extrapolado e o partido eleja seus candidatos. No caso da eleição de Dilma, especificamente, podemos citar o exemplo de Minas Gerais. Reduto de Aécio, o ex-governador conseguiu eleger seu sucessor com ampla vantagem, mas não moveu uma palha por Serra no Estado, e houve uma lavada para o lado de Dilma. Obviamente o Neto mais famoso de Minas não desejava um presidente de seu partido (que não fosse ele), com direito à reeleição quatro anos depois, a autofagia partidária foi o melhor caminho adotado por ele. Da mesma forma o PMDB pode ser o fiel da balança em muitas regiões, é um partido enorme, com grande representação e nenhum problema em pular para o lado do poder, esteja onde for, e a aliança é a maior ferramenta desse gigante (quase) adormecido. Quem se vale dela, leva grande vantagem em território nacional.
    Como disse o Filipe, Dilma não foi eleita pelos pobres, mas TAMBÉM por eles, mas uma série de fatores foram aproveitados naquele momento. O PT, mais do que UM fator, fez a leitura correta e agiu para ganhar as eleições, e ganhou com tranquilidade. E para as futuras eleições, os demais partidos Têm feito essa leitura? Ainda é cedo para analisar o panorama eleitoral, somente alguns indícios são perceptíveis por enquanto, mas pelo que tudo indica, o PT ainda não tem adversários à altura para o Planalto e não há, a não ser que o quadro político mude drasticamente, perspectivas que apareça alguém capaz de fazer frente a ele.

    • Caro Eduardo

      Primeiro, agradeço e fico feliz que tenha voltado.

      Seu comentário agregou bastante, agradeço. Concordo plenamente com sua leitura sobre a política pendular do PMDB e sobre a autofagia tucana, especialmente no que concerne Aécio Neves, que fez seu sucessor mas não impediu uma votação expressiva de Dilma em MG.

      E acredito que a oposição brasileira continua extremamente desorganizada e imediatista, vide o que já escrevi sobre Marina Silva, por exemplo.

      Um abraço!

  • Pingback: Resumo da Semana – 02/12 a 08/12 | Xadrez Verbal

  • Pingback: Protestos na Ucrânia: Motivos e a pergunta principal | Xadrez Verbal

  • Pingback: Senso-comum: O Bolsa-Família como esmola e acomodamento. | Xadrez Verbal

  • Pingback: Brasil e o porto de Mariel: Investimento, crítica ou ideologia? | Xadrez Verbal

  • Pingback: Especial: Brasil e o senso-comum | Xadrez Verbal

  • Em Setembro 2014, o jornal Estadão disse que:

    O número de crianças com déficit de estatura também caiu em todas as regiões do País, mesmo no Sul e Sudeste, onde, em tese, o déficit alimentar já era menor. Em quatro anos, a proporção de crianças abaixo da altura padrão caiu de 17,5% para 8,5% no País. Na Região Norte, de 26,6% para 14,4%; no Nordeste, de 19,2% para 9,3%. De acordo com Tereza Campello, o governo tem medido e pesado as crianças semestralmente e as que não atingem os indicadores passam a receber mais atenção. “Estamos aumentando a altura média. Temos muito a comemorar.”

    Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,cresce-altura-de-crianca-atendida-pelo-bolsa-familia,1561519

    Tudo indica que o dinheiro do bolsa família é entregue em regiões populosas.

    Em Janeiro 2012, o jornal Estadão apontou que:

    Cinco Estados receberam mais que um milhão de benefícios em dezembro, sendo três deles do Nordeste: Bahia (1,753 milhão), São Paulo (1,210 milhão), Minas Gerais (1,159 milhão), Pernambuco (1,116 milhão) e Ceará (1,077 milhão). O Sudeste foi a segunda região com maior atendimento pelo Bolsa Família, com 24,7% dos benefícios distribuídos. Depois vieram o Norte (11,1%), o Sul (7,8%) e o Centro-Oeste (5,4%). Os três Estados que receberam menos benefícios são da região Norte: Acre (56 mil), Amapá (51 mil) e Roraima (46 mil).

    Fonte: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,nordeste-recebe-metade-dos-beneficios-do-bolsa-familia-em-dezembro,98919e

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.