Brasil e o porto de Mariel: Investimento, crítica ou ideologia?

Caros leitores,

Hoje, concretamente, será retomado o Xadrez Verbal em 2014. Postei, mais cedo, um Resumo de Início de Ano, no lugar do tradicional Resumo da Semana; ficou melhor e mais simples para organizar o conteúdo e facilitar a vida dos leitores e visitantes do blog, com todos os posts já publicados em 2014. Neste retorno, pularei a série sobre o senso-comum no Brasil (que você pode ler aqui, aqui e aqui; ainda falta um texto), nem retomarei a série sobre a Alemanha das décadas de 1920 e 1930, que iniciou aqui; o tema de hoje será o polêmico porto de Mariel, em Cuba, e o envolvimento brasileiro nessa empreitada.

Porto de Mariel, em Cuba Foto:  Ismael Francisco/ Cubadebate

Porto de Mariel, em Cuba
Foto: Ismael Francisco/ Cubadebate

O assunto pode estar um pouco esfriado das manchetes nacionais, mas isso é bom e é uma grande vantagem da Internet como veículo de comunicação: permite maturar uma discussão, retomar o tema posteriormente e assimilar mais informações. De qualquer forma, mesmo se ausente das discussões imediatistas, o tema do porto de Mariel tem uma pertinência perene, seja para a economia, para a política externa, para a política interna e para a opinião pública brasileira. Os investimentos brasileiros no porto de Mariel têm quais justificativas? É um bom negócio para o Brasil?

Para organização do texto, o primeiro argumento abordado não é necessariamente o mais importante ou o que requer mais discussão; pelo contrário. Critica-se o montante investido em outro país seja sob o pretexto de que dinheiro brasileiro não deveria ser usado no estrangeiro ou com a comparação com o atual estado dos portos nacionais; nesse segundo caso, o argumento não procede, pois um investimento não impede o outro. No primeiro caso, a argumentação pode proceder. É completamente válido que alguém tenha a convicção de que o governo brasileiro não deve injetar dinheiro fora do país; não é o que o autor pensa, mas este texto não tem a pretensão de convencer uma pessoa que exerça tal opção, plausível e razoável.

O que me leva ao próximo argumento, ideológico. Tais investimentos não são um problema por serem feitos no estrangeiro, mas por serem feitos em Cuba, o que seria decorrente de uma relação entre o governo cubano e o Partido dos Trabalhadores e um apoio a uma ditadura comunista. O governo cubano e o PT possuem uma proximidade ideológica? Sim. O governo brasileiro se aproximou mais de Cuba desde 2002, com a eleição de Lula? Sim. Tais relações iniciaram com o PT? Não, o Brasil retomou laços políticos com Cuba desde a redemocratização, em 1986. A relação econômica entre Brasil e Cuba iniciou com Lula? Não, foi com Fernando Henrique Cardoso na segunda metade da década de 1990.

Além disso, como comparação, desde 2002 o Brasil aumentou consideravelmente seu intercâmbio comercial com a Colômbia, país sul-americano com relações políticas extremamente próximas dos EUA (um parâmetro que objetiva antagonizar com a imagem de Cuba comunista), incluindo a criação de fórum empresarial e também investimentos de infraestrutura pelo BNDES. Tais investimentos não chamaram 10% da polêmica que as ações que envolvem o porto de Mariel; o BNDES tem investimentos de cerca de doze bilhões de reais em projetos no exterior. Só na América Latina são cerca de cinquenta projetos (e essa atuação internacional do BNDES será tema de post próprio, aqui estou restrito ao porto de Mariel). Finalmente, sobre o modelo comunista do regime cubano, lembremos que o país líder (17%) do comércio global é a China.

Não é de hoje que o investimento é parte da política externa brasileira. A aproximação entre Brasil e África na década de 1970, durante o governo Geisel, já continha esse ingrediente. É simbólico o reconhecimento da independência e do governo socialista do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), em 1975; trata-se da ditadura brasileira, de postura “anticomunista” durante a Guerra Fria, sendo o primeiro país do mundo a reconhecer um novo país, de governo socialista. Hoje, pelos mesmos jornalistas e comentaristas que focam um componente ideológico em relação a Mariel, Geisel correria o “risco” de ser chamado de comunista.

Geopoliticamente o investimento tem explicação. O início da abertura, tanto da economia (note, caro leitor, que não tratarei do embargo imposto à Cuba aqui, é um tema por demais complexo) quanto do regime cubano (a União Europeia noticiou nos últimos dias que se reaproximará, como bloco, da ilha) torna interessante a presença econômica brasileira na ilha, com possibilidade de outros dividendos futuros. A posição estratégica do porto de Mariel possibilita também que o porto se torne um ponto de convergência (hub) para o fluxo mercantil destinado aos EUA ou que passe pelo Canal do Panamá, que será ampliado. Ligando-se os pontos, nota-se o papel que o porto pode desempenhar no fluxo comercial entre o Oceano Pacífico e a costa leste dos EUA e o Caribe. A região de Havana é importante para o comércio marítimo desde o século XVI.

Mas qual seria o interesse brasileiro no fluxo do porto? Pois são justamente as receitas portuárias que foram concedidas como garantia dos empréstimos, de acordo com Thomaz Zanotto, diretor da Federação das Indústrias de São Paulo (longe de ser uma entidade comunista ou do Foro de São Paulo). Tais receitas serão em moeda forte (leia-se, dólar) e o porto será administrado em parceria com as autoridades portuárias de Singapura, um dos maiores e mais movimentados portos do mundo. Além disso, outro aspecto importantíssimo do projeto (e negligenciado) é a criação, no entorno, de uma Zona de Processamento de Exportação criada nos moldes chineses. Ali as empresas poderão ter capital 100% estrangeiro; o governo e o MRE estão buscando, assim, mais mercado para as empresas brasileiras, em localização privilegiada.

Finalmente, existem as contrapartidas imediatas, que são derivadas da injeção de dinheiro na economia brasileira. Sim, na economia brasileira, pois é usual dos projetos do BNDES no estrangeiro que a maior parcela do montante envolvido seja necessariamente usado para a compra de serviços, materiais e produtos brasileiros. Mauro Hueb, diretor-superintendente em Cuba da Odebrecht (uma das empresas que mais se beneficiou dessa política, diga-se), empresa brasileira responsável pelas obras em sociedade com a Quality, companhia vinculada ao governo cubano, falou em até 156 mil empregos diretos, indiretos e induzidos, embora esse número seja de difícil conferência.

O que leva à primeira crítica ao projeto. Sim, claro, o projeto não é infalível. O problema tem sido a superficialidade e o componente ideológico e partidário dos comentários (supostamente presente no projeto, mas em larga abundância nos críticos). A falta de transparência é preocupante. Considerando a evolução no tema que a sociedade brasileira fez nos últimos anos, como a Lei de Acesso à Informação, do final de 2011, e o Portal da Transparência do Governo Federal, de 2010, é desapontador saber que os acordos foram classificados como secretos, com sigilo até 2027; embora tal prática seja corriqueira nas relações internacionais, não se tratam de documentos políticos, mas de entendimentos financeiros.

Outra crítica a ser feita é em relação ao estado da infraestrutura portuária brasileira. Como afirmado no terceiro parágrafo, usar a situação portuária brasileira para rejeitar os investimentos em Mariel é inválido, pois um não anula o outro; mas, ao mesmo tempo, a crise portuária brasileira requer mais atenção e mais investimentos. Para deixar claro: invista-se nos dois. O Brasil tem das maiores costas oceânicas do mundo, além de uma das dez maiores Zonas Econômicas Exclusivas, e ainda enfrenta problemas de escoamento de produção. Espera-se que a situação seja remediada com a nova Lei dos Portos, que estava no tradicional cabo de guerra entre Executivo e Legislativo, e que pode trazer até cinquenta bilhões de reais ao setor.

O projeto do porto de Mariel e sua Zona de Processamento de Exportação têm importância geopolítica e econômica que justificam o projeto de financiamento do BNDES. Os dividendos da empreitada, como em qualquer empreendimento, serão provados ou desmentidos no futuro apenas, mas as garantias e contrapartidas tornam o projeto sólido. Tal solidez não anula nem eclipsa as críticas válidas e passíveis de serem feitas, mas, como praticamente todo e qualquer tema nesses dias de ânimos acirrados e de ferrenha guerra de informação e desinformação, caíram na vala do senso comum e do marasmo da superficialidade. Ao focar as críticas ao projeto nos eventuais aspectos políticos envolvidos, os comentaristas demonstraram o ranço ideológico existente; mas os próprios.

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Recomendo que assistam a entrevista de Thomaz Zanotto, diretor da Federação das Indústrias de São Paulo para o jornalista Heródoto Barbeiro; lembro-os que se trata de jornalista dos mais conceituados e peço que ignorem a provocação presente no vídeo do link.

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