Galícia, A Estrada e a história de dois Ramón

Caros leitores, gostaria de partilhar um depoimento com vocês. Claro, devidamente autorizado. Em decorrência do programa inaugural do podcast Fronteiras Invisíveis do Futebol, que tinha como temática a Galícia, recebi um email do Ramón Pedrosa, do Rio de Janeiro. Além de prestar apoio ao trabalho realizado por aqui e alguns elogios, pelo qual sou muito grato, o Ramón dividiu uma parte da História de sua família, relacionada ao programa. Fiquei muito feliz de ver que parte do Xadrez Verbal motivou um relato tão bonito, tanto que decidi pedir para o Ramón para divulgar aos outros leitores e ouvintes, vocês. Espero que gostem.

Ramón Pedrosa é neto de um galego nascido em uma cidadezinha chamada Estrada na província de Pontevedra. A atual prefeitura da cidade ilustra esse post e, além de conferir a localização de La Estrada no mapa abaixo, você também pode acessar o site da cidade e conferir seus locais turísticos. Voltemos ao Ramón. Ele e seu irmão cresceram torcendo pela equipe do La Coruña, por causa do Bebeto e do Mauro Silva. Para o leitor que não entendeu a relação, sugiro que ouça o programa, irá gostar.

Espanha Estrada Galícia

Localização, no ponto vermelho, de A Estrada na Galícia, no noroeste da Espanha.

Após a ida do jogador Mazinho ao Celta de Vigo o time melhorou bastante, e o Ramón “virou a casaca”, influenciado também por sua visita à Galícia, em 1998, quando era adolescente. Nessa viagem conheceu o centro de treinamento do Celta, acompanhado por um primo que jogava na equipe B. O que motivou o email dele, entretanto, não foi a parte futebolística; como costumo dizer, o programa não é sobre futebol, é com futebol, e pretende atingir todos os públicos. O que tocou o Ramón foi a política e a História da Galícia.

O avô do nosso ouvinte, chamado Lino, é o caçula de oito irmãos. Chegou ao Brasil com dezessete anos, motivado, nas palavras do Ramón: “Hoje eu consigo ver que, para além de procura por melhores condições de vida, ele foi incentivado ao exílio em função da história de seu pai, meu bisavô.”. O bisavô do Ramón ouvinte também se chamava Ramón, Ramón Rico Fernandez, era republicano, socialista e estava como “prefeito interino” de Estrada quando estourou a Guerra Civil Espanhola, em 1936, assunto coberto no podcast.

Ramón bisavô, na época, foi preso pelos nacionalistas de Franco, por se recusar a colocar o exército na rua e, um ano depois, foi fuzilado em praça pública. Era um empresário e teve seu negócio perdido. Sua esposa, bisavó do nosso ouvinte, morreu logo após, vitima de uma depressão profunda e das doenças que assolavam a região naquela época; afinal, estamos falando de uma região pobre em meio uma guerra. Além deles, quatro irmãos do avô do Ramón ouvinte também faleceram por causa da situação de miséria.

Ramón Rico Fernandez, bisavô do nosso ouvinte, em foto retirada do artigo citado ao final do texto.

Ramón Rico Fernandez, bisavô do nosso ouvinte, em retrato retirado do artigo citado ao final do texto.

O avô do Ramón foi criado pelo tio que, de certa forma, “assumiu” o negócio do bisavô. Do restante da família, o tio-avô mais velho veio para o Brasil, depois foi Uruguai. Uma tia-avó foi fazer a vida em Buenos Aires, outro tio-avô ficou em Estrada e avô veio para o Brasil, completando a família. O curioso é que o Ramón conheceu essa História, a sua História, pela internet, ao procurar sobre a família. Seu avô mesmo não conhecia direito os eventos, já que tinha cinco anos quando o pai foi executado.

Posteriormente, com o contato com os tios-avôs, Ramón pôde “perceber a grandiosidade dessa história, os reflexos dela na vida do meu avô e sua família, a violência com que essa família foi dividia e ver a dor deles até hoje é de pesar o coração.”. Infelizmente, Lino, o avô do nosso ouvinte, guardou algumas mágoas com seus irmãos, um sentimento de abandono; embora o seu irmão mais velho tivesse apenas quinze anos quando do acontecimento, esse é um tipo de sentimento que a destruição da guerra pode causar.

Hoje, Ramón Rico Fernandez é considerado um dos Mártires da Estrada e algumas cartas dele para companheiros e para a família que estão publicadas da Internet. Talvez o leitor possa se confundir ao encontrar o nome grafado como Ramón Fernandez Rico; na grafia espanhola, o nome do pai de família vem primeiro, é o nome do meio, ao contrário da grafia portuguesa, adotada no Brasil.

Caso o leitor queira saber mais, pode ler um texto em galego, idioma bem similar ao português, chamado Cartas desde a esperanza fuxidía de Ramón Fernández Rico, Tenente de Alcalde da Estrada no 1936, publicado no Xornal de Tabeirós Montes, que inclui algumas cartas e parte da História relatada aqui. Caso queira mais ainda, pode ler um artigo em PDF, em castelhano, do historiador Ruy Farías, entitulado Sucumbir a merced de lacalumnia y la infamia: represión, pauperización y muerte entre la Guerra Civil española y la década de 1940.

Esse bonito, ao mesmo tempo triste, relato serve para nos lembrarmos das Histórias que formaram o Brasil, desde pessoas que foram escravizadas até refugiados da guerra. Também nos lembra dos horrores dos conflitos, que geram consequências não apenas nas fronteiras, mas no cotidiano de famílias pelo mundo. Para pensarmos: a Guerra Civil Espanhola causou cerca de meio milhão de mortos e menos de um milhão de refugiados. Uma fração da Segunda Guerra Mundial e menos refugiados do que a atual crise no Oriente Médio e norte da África.

Finalmente, deixo aqui meu agradecimento público ao Ramón Pedrosa, tanto pelo email quanto, especialmente, por autorizar a partilha dessa História com vocês.


assinaturaFilipe Figueiredo, 29 anos, é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.


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3 Comentários

  • sou a neta de Ramon Fenández Rico, e meu pai que morreo o ano pasado seu filho mais grande de os que quedaron vivos, e sou a heredeira das 170 cartas que meu abo escriveu desde a prision da Isla Lazareto de San Simon en Pontevedra .Galicia, el ten uma familia aqui no uruguay de tres netas, 6 bisnetos, e 5 tataranetos, N a mia casa meu pay(el fulho do Ramon) sempre falou de o que aconteceu na Estrada e da mala morte do abo, ele foi o heredeiro de suas cartas e la de seus camaradas, e de mia avo e tias, meu nombre es el de mia avo e de mia tia Pura Fernandez, e sou un pequeno aporte a o reportagen publicado mia avo estaba embarazada de seu ultimo filho de 7 meses cuando a meo abo foi prendido, e no lo conoceu pois cuando minha avo levou pra conocerlo el avia sido fusilado esa mesma mañana.
    Pura Fernández

  • Amo Galícia! Meu avô é galego de Pontevedra e graças a ele tenho a cidadania espanhola e desde pequena faço danças galega. Indico muito que conheçam esse lugar maravilhoso ❤

  • Luiz Augusto Calvo Tiritan

    Olá!
    Acabei de achar o artigo sobre a Galícia e me interessei por ser neto de um galego que seguiu quase a mesma trajetória citada no texto. Meu avô é de uma cidade (pode ser vila, não me lembro agora) na região de Lugo e veio para o Brasil fugindo da guerra pois era militar quando tudo começou. Aqui aportou em Santos, mas estava indo para Buenos Aires onde tinha um irmão, e conheceu minha avó.
    Gostei muito de ler outras estórias parecidas com a minha e saber um pouco dessa guerra que causou tantos problemas para as regiões que não apoiavam o Franco.
    Obrigado pelo excelente podcast que você faz Filipe e já sou um grande admirador do seu trabalho.

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