ONU 70 anos: Netanyahu e o silêncio ensurdecedor internacional

Caros leitores, prosseguimos a cobertura especial da 70ª Assembleia Geral da ONU. Você pode acessar todos os textos publicados (e os com publicação agendada) no índice da cobertura especial. Primeiro texto do dia, comentando Israel e Netanyahu. Ainda mais um texto no dia de hoje, além de um podcast especial.


Ontem, dia Primeiro de outubro, Benjamin Netanyahu, Primeiro-ministro de Israel, falou perante a 70ª Assembleia Geral da ONU. Seu discurso foi longo, mais de quarenta minutos, e performático, com uso corporal, silêncio dramático e até um gracejo gastronômico. Boa parte do discurso foi dedicada ao tema do acordo nuclear do Irã, com outros três trechos distintos: o processo de paz com a Palestina, os recentes acontecimentos em Jerusalém e a relação entre Israel e Estados Unidos. Todos pontuados com trechos sobre Israel, em tom de justificativa ou de apologia, com alguns momentos transparecendo o exclusivismo característico de Netanyahu. Esse é um dos principais problemas do líder israelense: ele faz bons discursos ou argumentações para o público que vai concordar com ele ou partir das mesmas premissas, mas com pouco poder de convencimento ou de reflexão para um público mais amplo.

Ele inicia com “saudações de Jerusalém” e comenta que Israel deve ser apoiada por ser a única democracia do Oriente Médio, deixando a Turquia de lado em seu raciocínio. Relembra a primeira vez que falou naquela tribuna, trinta e um anos atrás, como delegado de Israel para as Nações Unidas. Quando falou justamente do Irã. E segue para fazer um jogo de palavras, adaptando sua abertura de três décadas atrás para seu novo discurso. A ideia que ele quer transmitir é de que o Irã está, por trinta anos, perseguindo seu país e seu povo, e essa será a tônica do restante do discurso. Por outro lado, entretanto, pode-se apontar que, se após trinta anos de vida política e pública, você mantém as mesmas palavras, talvez seja necessária, também, uma reflexão de suas próprias convicções e ações.

Netayahu critica duramente, como era de esperar, o acordo nuclear com o Irã. Elenca ameaças iranianas, como células terroristas, focando especialmente na relação entre o Irã e o grupo libanês Hezbollah; no texto comentando a fala de Rouhani, comentou-se justamente que o líder iraniano omitiu seu papel ao falar de grupos militantes da região. Ao mesmo tempo, é bom o lembrete de que o Hezbollah é fruto da ocupação israelense no sul do Líbano, na década de 1980, durante a guerra civil que disfarçou um conflito entre Israel e Síria. O propósito da fundação do Hezbollah, como explícito em seu lema, era a expulsão de Israel do Líbano, não é um efeito colateral ou indireto, é consequência direta.

Ao elencar as ameaças iranianas, cita células terroristas e a abertura de “duas novas frentes de terror” na Cisjordânia e nas colinas de Golã. Netanyahu elenca essas ameaças detalhadamente, com referências geográficas, de carregamentos de armas e de tipos de armamentos. Em um desses momentos, fala de uma célula terrorista no Chipre, com determinada carga de explosivos, a mesma carga que causou “a explosão do prédio federal” em Oklahoma. Refere-se ao atentado de abril de 1995, um dos maiores atos terroristas da História dos EUA, que matou cento e sessenta e oito pessoas, executado por dois cidadãos dos EUA. A maneira com que a referência foi feita repete um padrão de Netanyahu: partes de seus discursos são direcionados especificamente ao público dos EUA, não aos israelenses ou aos delegados da comunidade internacional. É um trabalho de mídia e de opinião pública.

As críticas de Netanyahu ao acordo nuclear com o Irã são contundentes e, em alguns casos, válidas, especialmente quando ele sai do discurso e aborda trechos concretos do acordo. Isso leva ao tipo de crítica que ele sofreu no cenário político interno de Israel: ao condenar de forma radical e até intransigente o acordo nuclear, com tensões políticas com o governo Obama, Netanyahu isolou Israel de participar das negociações. Justo o maior interessado. Essa crítica foi repetida aqui no Xadrez Verbal. Se Netanyahu tivesse inserido Israel nas negociações, não simplesmente rejeitá-las, conseguiria apontar essas críticas concretas ao acordo enquanto era tempo e no fórum válido para isso. Israel foi uma voz passiva em uma das mais importantes negociações da última década, quando, repete-se, era um dos maiores interessados.

O ponto de maior destaque e repercussão, e também o mais performático, veio nesse trecho do discurso. Netanyahu elencou diversas ameaças e declarações por altos membros do Estado iraniano, chegando ao mais recente livro do Aiatolá iraniano, “uma baboseira de quatrocentas páginas”; palavras ditas enquanto segurava uma cópia do livro. Todas as declarações falavam da destruição de Israel, que o regime sionista não existiria mais em vinte e cinco anos (declaração condenada no último podcast do Xadrez Verbal). E, apesar de todas as declarações de ódio e genocidas, a comunidade internacional ficou em silêncio. Um “silêncio ensurdecedor”. E Netanyahu encarou a AGNU, ele mesmo em silêncio, por quase um minuto.

Netanyahu encara a AGNU em silêncio, por exatos quarenta e quatro segundos.

Netanyahu encara a AGNU em silêncio, por exatos quarenta e quatro segundos.

Um dos aspectos desse trecho de Netanyahu é dúbio. O líder israelense elencou investimentos e gastos em armas pelo Irã, sendo que o Irã ainda está sob sanções de compras armamentos, que ainda vigorarão por uma década, não serão suspensas imediatamente. Ou seja, o regime iraniano não poderá comprar bilhões em armamento quando bem entender, ao contrário do que Netanyahu transparece. Outros dois pontos contraditórios. O primeiro é uma rotina, apontar que Israel condena o programa nuclear iraniano, signatário do Tratado de Não proliferação, enquanto Israel não é signatário de nenhum tratado internacional sobre armamentos nucleares, químicos ou biológicos, além de possuir arsenais de todos os referidos tipos.

Claro que deve-se fazer a distinção de que um regime é uma teocracia e o outro é uma democracia, mas a falta de coerência israelense no tema é sempre tão visível que é obrigatório apontar o problema. A outra contradição é alertar ao mundo que o Irã está desenvolvendo mísseis balísticos intercontinentais para “chover destruição em massa, qualquer hora e qualquer lugar”. Outro ponto constantemente abordado aqui nesse espaço é a contradição com outro regime da região, a monarquia absolutista saudita: a Arábia Saudita possui mísseis balísticos, exibidos publicamente, de origem chinesa. A Arábia Saudita não reconhece o Estado de Israel, possui uma política regional tanto quanto, ou mais, danosa que a iraniana e é tratada de forma incólume.

Nesse momento inicia-se o problema do discurso de Netanyahu. O tom exclusivista e de Destino Manifesto. Enquanto as críticas políticas que ele faz são válidas e impõe uma reflexão, aqui ele seduz apenas um público, exatamente por serem argumentos particulares. Fala em genocídios, que o povo de Israel resistiu a Babilônia, Roma, a Idade Média, os pogroms e o Holocausto. E o povo judeu perseverou, com o recado para qualquer regime que pretenda exterminar o povo judeu: olhar em volta e ver que Babilônia, Roma e o Reich de mil anos não estão ali, mas o povo judeu está. Bradou “O povo judeu está vivo” em hebraico, e em sua “eterna capital” de Jerusalém. Lembrando que Jerusalém não é reconhecida como capital de Israel, mas como território internacional ocupado e dividido.

Netanyahu buscou também agradar os ouvidos de seu aliado em uma “aliança inquebrável”, os EUA, novamente falando ao público dos EUA e dizendo que suas discordâncias com Obama são “de dentro da família”. Provavelmente tentando recuperar o terremo na opinião pública dos EUA após, por exemplo, o desastrado episódio em que falou no Congresso dos EUA sem convite ou contato com a Casa Branca; em uma república moderna, relações exteriores são prerrogativa do Executivo, não do Legislativo. Tivemos também, pelo segundo ano seguido, uma referência de beisebol no discurso de Netanyahu, agora de um jogador judeu do New York Yankees, Yogi Berra.

Aqui, ao buscar um tom conciliador e divulgador da importância de Israel, inclusive de tolerância, citando cidadãos israelenses cristãos e muçulmanos, que Netanyahu fez o gracejo citado na introdução desse texto. Elencou diversas conquistas científicas e tecnológicas de Israel, que estariam presentes no cotidiano de todo o mundo, “está até no seu prato, quando você come o delicioso tomate cereja. Isso também foi aperfeiçoado em Israel, caso você não saiba”, com um sorriso. O ponto fraco dessa argumentação de tolerância de Netanyahu é que, embora ela seja verdadeira, isso não é algo desejado pelos conservadores israelenses, grupo que o inclui. Corre-se o risco de Israel deixar de ser um Estado judeu, com os judeus sendo minoria, mesmo motivo pelo qual repudia-se a solução de Um Estado para Dois Povos.

Outro ponto polêmico do discurso de Netanyahu foi quando o premiê israelense aborda o conflito com os palestinos. “Lamenta” a decisão de Abbas de não “seguir as negociações”, diz “saber que é difícil negociar” e que ele, Netanyahu, “sabe o preço da guerra”, por ter perdido amigos e seu irmão. A ordem dos discursos, sorteada, permitiu que Netanyahu se aproveitasse das palavras de Abbas, distorcendo-as. Isso deve ficar claro. O líder palestino disse que não cumpriria mais os acordos que são constantemente descumpridos por Israel, que não negociaria mais com um governo, o de Netanyahu, que não está comprometido com uma solução de Dois Estados, já que sequer reconhece a Palestina como Estado. O líder israelense distorceu as palavras de Abbas para colocar-se como o disposto para a diplomacia, quando não é o caso de seus governos, no plural. Isso para não chamar Netanyahu de cínico nesse momento.

Ao final, comentou os acontecidos em Jerusalém, o choque entre muçulmanos e judeus apoiados pela polícia israelense. Enquanto Abbas e o rei da Jordânia falavam da Esplanada das Mesquitas, Netanyahu comentou os acontecidos no Monte do Templo; o mesmo lugar geográfico, com diferentes nomes e importâncias de acordo com a religião. Colocou que a ameaça vem dos extremistas que estavam colocando explosivos na mesquita e impedindo os judeus de chegarem aos seus locais sagrados. Um jogo de empurrar responsabilidades que não beneficia ninguém e não resolve nenhuma situação. Novamente, um momento exclusivista do discurso, quando comenta o papel de Israel em protejer o Monte do Tempo, pois foi ali que “mil anos antes do nascimento do Cristianismo e mais de mil e quinhentos anos do nascimento do Islã, o Rei Davi fez Jerusalém nossa capital, e o Rei Salomão construiu o Templo naquele monte”.

Encerra colocando Israel como a proteção da civilização contra o barbarismo, que Israel não luta apenas por si, mas por todos. Ao reler o discurso, repete-se aqui a sensacional argumentação de Ramos-Horta, Nobel da Paz de Timor Leste. Cobra-se de Israel no processo de paz não por “antissemitismo” ou por perseguição, mas por ser justamente o Estado de Israel, uma democracia consolidada e um país rico e moderno, que pode fazer coisas incríveis, caso deseje. Usar um tom quase proselitista, de exclusivismo religioso, apelando para referências de qual religião é mais antiga, não combina com a imagem de Israel e seus valores modernos que Netanyahu deseja transmitir. Em um momento em que a coalizão partidária de Netanyahu sobrevive com a maioria de um voto e quando ele abre seu discurso com palavras de trinta anos atrás, talvez seja o momento de buscar uma solução diferente para os antigos problemas.


Para ficar informado e ler, assistir ou ouvir os discursos na íntegra, você pode checar a programação do debate no site da 70ª Sessão da Assembleia Geral da ONU; notícias e releases no site da Assembleia Geral da ONU; e assistir aos pronunciamentos e demais coberturas no site oficial das Nações Unidas UN Web TV.

No caso específico do discurso de Netanyahu, até o momento em que esse texto teve sua publicação agendada, ele ainda não estava disponível, em texto, no site da AGNU. Ele pode ser encontrado nesse link do The Times of Israel.


assinatura

Filipe Figueiredo, 29 anos, é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.


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