Reminiscências do relógio de Ahmed

Caros leitores e ouvintes do Xadrez Verbal, no último podcast discutimos um pouco a notícia da prisão do garoto Ahmed nos EUA, algemado por ter levado um relógio para a escola. Dada a repercussão do tema, achei melhor fazer este breve texto tratando de alguns pontos levantados pelos ouvintes. Vários comentários fizeram contraponto ao que foi dito no programa, a grande maioria de forma respeitosa, citando outras fontes e dados. Caso você não saiba do que se trata o assunto, pode ouvir o último podcast (esperando que goste e se inscreva), ou pode ler algumas matérias da imprensa, como esta da revista Época, que aborda inclusive a repercussão da notícia com Barack Obama.

Em primeiro lugar, agradeço por todos os comentários, é gratificante ver a crescente repercussão do podcast, que é a mídia mais recente do Xadrez Verbal. Antes de seguirmos, uma correção, que será feita também no próximo programa. Eu mencionei, por duas vezes, que o relógio de Ahmed seria um projeto de feira de ciências, algo do tipo. Isso está errado, não era o caso. Peço desculpas pela confusão. Um tema presente em diversos comentários é que a prisão de Ahmed não teria sido motivada por questões étnicas ou religiosas, mas pela paranoia que assola o Ocidente, especialmente os EUA. E não poderia concordar mais.

Ao ouvir o programa, eu deixo isso claro, especialmente em minha provocação ao caríssimo Matias: o fato de um garoto de catorze anos ser algemado em sua escola por uma engenhoca seria sinal de que os terroristas venceram? Conseguiram semear a discórdia e a paranoia no tecido social, algo muito mais traiçoeiro e difícil de lutar do que uma guerra convencional? A paranoia é sim um elemento essencial no caso Ahmed, isso é inegável, ao ponto de, motivados por essa mesma paranoia, fazermos uma das piores coisas: desmerecer a vítima. Uma das expressões disso foi o questionamento de que o garoto “não devia ter levado” o relógio para a escola, ou de que ele sequer “inventou” alguma coisa, apenas desmontou um relógio e o montou de forma diferente.

Segundo esta matéria do The Guardian, Ahmed sempre gostou de fazer essas engenhocas e brincar com peças e com eletrônicos; era isso que o fazia popular em sua antiga escola. Ele consertava coisas para os colegas, mostrava suas “invenções” para os professores, quase um estereótipo de nerd de filme dos anos 1980. Então, em 2015, ele mudou de escola. E fez exatamente o que costumava fazer em seu antigo colégio, nada mais que isso. Ainda usando o estereótipo de nerd e o vigor físico do garoto nas fotos, ele dificilmente usaria o futebol americano para fazer novos amigos. Falando até como professor, é sempre bom ver alunos interessados e com iniciativa, seja para buscar um livro de História diferente ou fazer uma “invenção”. Ou seja, talvez seus motivos sejam mais simples do que as suspeitas podem levantar.

Notem que eu disse talvez. Outro comentário trouxe um texto que coloca que tudo pode ter sido armação por parte do pai de Ahmed. Seu pai teria pretensões políticas e é membro de uma organização civil muçulmana. Na mesma matéria do The Guardian, podemos ver suas irmãs afirmando que essa organização civil, o Conselho de Relações Islâmico-Americanas, “não fala pela família”. Mesmo que essa hipótese se prove verdadeira e que o pai de Ahmed tenha usado a situação para proveitos políticos próprios, uma coisa não pode ser esquecida: Ahmed seria mais vítima ainda! Agora, não apenas da paranoia e do contexto social, mas também de seu próprio pai.

Antes de prosseguirmos, um detalhe dessa hipótese é que a foto de Ahmed algemado teria sido tirada pela sua irmã, o que poderia implicar “anuência” da família. Convenhamos, se seu irmão de catorze anos é algemado sem seus responsáveis e sem um advogado, você vai documentar a situação para ter provas depois. A cara de assustado de Ahmed dificilmente seria a de alguém envolvido em uma armação, ou muito bom ator. Retornamos então ao ponto da paranoia. Uma prova de que o caso de Ahmed não tem relações étnicas e religiosas seria o fato de que “crianças brancas” também foram vítimas dessa paranoia, incluindo atividades inocentes, como fazer “armas” com os dedos enquanto brincavam no recreio. Crianças de menos de dez anos, com vários links disponíveis.

De todos os casos que os ouvintes citaram, existe uma diferença grande em relação ao episódio de Ahmed. As crianças foram repreendidas, suspensas, pais foram chamados nas escolas, inclusive com a presença de policiais. Um pai, de 26 anos, foi detido e aceitou uma busca policial em sua casa após sua filha de quatro anos desenhar uma arma na escola. Fruto da paranoia de uma sociedade com episódios traumáticos de terrorismo e de assassinatos em massa, inclusive em escolas, todos se lembram do caso Columbine. As crianças das notícias, entretanto, não foram algemadas e levadas pela polícia sem um responsável. A diferença de tratamento é visível. E tanto o tratamento durante o episódio quanto o tratamento após o ocorrido. Justamente pelo elemento étnico e religioso, como dito no programa.

Por qual motivo Mark Zuckerberg, Steve Wozniak e Barack Obama prestaram solidariedade ao garoto? Convites, materiais, pronunciamentos? Pois ele precisa ainda mais desse apoio do que a maioria das pessoas. Provavelmente ainda sofrerá mais preconceito e terá menos oportunidades. “É muçulmano”, “tem cara de muçulmano”, “é árabe” (embora ele seja filho de sudaneses, e sudaneses não são árabes). A paranoia criada pelo terrorismo fez com que um enorme grupo de pessoas torne-se alvo de preconceito, ainda mais residentes nos EUA, justamente por fugirem das condições que criam o terror. Como dito no programa, derrotar o terrorismo e a paranoia implica justamente em apoiar garotos como Ahmed, mostrar que a sociedade se importa. Como dito no programa, impedir que outro garoto de catorze anos desista de seus projetos, pois viu Ahmed algemado. Prender uma criança nessas circunstâncias é errado e, no caso de Ahmed, gera ainda mais consequências nefastas.

Ps: Outra abordagem crítica ao caso de Ahmed, que me esqueci no texto. No Texas, bomba falsa é tipificado como crime grave (em parte, por causa da paranoia citada), o que justificaria sua prisão. Seria o caso se o garoto tivesse dito que o relógio era, de fato, uma bomba, sendo que todas as fontes do caso afirmam que, desde o início, ele falava que era um mero relógio, inclusive para os policiais.


assinaturaFilipe Figueiredo, 29 anos, é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.


Como sempre, comentários são bem vindos. Leitor, não esqueça de visitar o canal do XadrezVerbal no Youtube e se inscrever.


Caso tenha gostado, que tal compartilhar o link ou seguir o blog?

Acompanhe o blog no Twitter ou assine as atualizações por email do blog, na barra lateral direita (sem spam!)

E veja esse importante aviso sobre as redes sociais.


Caros leitores, a participação de vocês é muito importante na nova empreitada: Xadrez Verbal Cursos, deem uma olhada na página.

botãocursos

18 Comentários

  • Bom texto. Talvez eu tenha me expressado mal nos comentários do post do podcast, mas também acredito que o garoto seja vítima. É claro que a polícia está errada em prender o garoto e tomara que medidas sejam tomadas para evitar estes casos.

  • Cara, seu texto ficou excepcional, a paranóia é muito alta nos EUA e, claro, isso afeta muito as crianças (independente de cor). Mas, não dá para ignorar o fator religioso, como você disse, há um tratamento diferenciado, mais pacífico, nos outros casos (tão absurdos quanto este, não me entenda mal) e o caso de Ahmed disponta, talvez a foto do garoto com a camiseta da NASA algemado tenha ajudado na disseminação da notícia, que tomou os TT do twitter. A minha adição ao seu texto, claro, infinitésima, já que seu texto ficou perfeito seria de que, você como historiador e eu, como futuro historiador da ciência, sabemos que motivações são as coisas mais difíceis de se estudar (e de se “provar”) em História, é realmente muito triste ler as conspirações envolvendo o pai de Ahmed, gostaria de saber qual o nome do superpoder que alguém deve ter para ler mentes de uma família que mora a quase 9.000 Km de distância. Ou, pelo menos, como essas pessoas hackearam a NSA pra ouvir as conversas, via celular, que os membros da tal família tiveram. Mesmo se a conspiração for correta, Ahmed continua vítima.

    PS: Ele não devia ter feito aquilo, sabia que ia dar merda = Também, com esse vestidinho curto, parece que você tava pedindo por isso.

    PS2: O pai dele sabia que ia dar merda, ele usou isso = acredita em cartomante.

    PS3: O relógio de Ahmed é realmente muito simples, e daí? Não é comum uma criança fazer algo assim, muito menos quando não é sob o dever das tarefas de casa, mais ainda, quase não é comum finalizarem as tarefas. Além disso, foda-se se ele chamou de invenção, as pessoas não aprendem as palavras decorando seus significados filosóficos em um dicionário, o relógio é simples, mas foi ele quem “fez” (‘montou’ seria melhor), mesmo assim, não é por aí que a banda toca, não é assim que se aprende a usar palavras, decorando um dicionário.

  • Filipe somos ambos formados em História, plastimodelistas (não sei se você ainda é), mas esse clima de medo, incapacidade de entender o outro e por assim o demonizar parece que é algo que vai e vem, aquela máxima que devemos aprender com a história para ela não se repetir me parece uma das mais inúteis na prática. Tenho visto no facebook, europeus pessoas supostamente informados que tiveram formação educacional elevada, plastimodelistas como eu, postando coisas referentes aos refugiados sírios que me lembram o que acontecia na Europa em outros tempos em que o nazismo frutificava por lá.

    • Alex, acabo de ver uma matéria que me fez chorar, literalmente, e pensar nesse clima de xenofobia com relação aos sírios na Europa, e os haitianos, no Brasil. Uma garotinha nasceu na Síria com estilhaços de um míssil no corpo. Ela e a mãe passam bem, assim como seus 3 irmãos mais velhos que também se feriram. Como alguém que se autodenomina ser humano pode fechar os olhos a uma situação como essa, e achar que essas pessoas não têm direito a acolhida e paz de espírito? É muito egoísmo.

  • Clayton H. da Costa

    Galera… Vamos parar de procurar pelo em ovo? Teve muito garoto BRANCO de classe média (e alta) que já foi preso por muito menos nos EUA (inclusive por arrotar na sala de aula [deixarei o link ao final do comentário]). Existe racismo nos EUA e no mundo inteiro?! INFELIZMENTE SIM… Existe paranoia extrema? SIM! Mas não é só por que o garoto tinha nome muçulmano que vira automaticamente um caso de racismo. Como dito (e basta 5 minutinhos de pesquisa no Google), já aconteceu prisões muito “piores”, por motivos muito mais imbecis nos nossos vizinhos do norte. Em vez de ficar procurando pelo em ovo (tomo a liberdade de me repetir), devemos discutir o fato de crianças estarem sendo presas a torto e a direito por la.

    Vamos deixar para falar de racismo em casos em que foi realmente racismo. Se ficar tratando absolutamente tudo como racismo, daqui a pouco passa a ser banal e pra muitos perde-se a importância da discussão, como para várias pessoas já aconteceu sobre a questão do feminismo.

    Desculpe ter me prolongado, continuem o bom trabalho, um grande abraço e fui! (Segue o link comentado)

    http://www.cbsnews.com/news/student-arrested-for-burping-lawsuit-claims/

    • Clayton, você pode não gostar, mas as questões étnicas e religiosas do garoto são sim um dos elementos (UM DOS) do episódio, um agravante tanto no lidar da situação (leia a entrevista do garoto em que ele conta sobre seu interrogatório) quanto, especialmente, em suas consequências.

      Sinto muito, mas a acusação de “procurar pelo em ovo” pode ser rebatida com um simples “negar o óbvio”, o que também não leva a lugar algum.

      Um abraço.

      • Clayton H. da Costa

        Aí você da brecha pra babaca (provavelmente o mesmo que fala de heterofobia) começar a falar que nos casos que citei foi “”brancofobia””. A parte do interrogatório eu concordo, ali foi claro o racismo, mas me referi a prisão em si. Ficar afirmando assim sem saber se REALMENTE a policia foi chamada, pura e simplesmente pois um garoto de nome muçulmano estava com uma placa eletrônica na mão, abre brecha pra muita coisa negativa, sem falar que pode ser uma grande mentira. Pode ter sido simplesmente mais uma prisão ridícula como as citadas e aí sim, quando foi preso e viram a etnia e / ou a religião do garoto, começaram a cuspir o preconceito pra cima do pobre coitado. Veja bem, de forma alguma estou dizendo que não tem racismo, ou mesmo que no próprio caso não houve, não cabe o comentário “goste ou não”, o que estou falando é sobre a verdadeira motivação por trás do momento em que o garoto foi algemado (tão e somente). Acho que dar essas brechas pra maluco, piora tudo, permitindo essa visível e crescente discriminação (por qualquer motivo que seja) em pleno século XXI!
        É aí que pioram os casos como o que você citou, de gente chegando ao absurdo de falar que e armação do menino, da família, seja de quem for.

        A questão ao meu ver, reforço, é que crianças estão passando por esse possível trauma, por motivos patéticos, sejam elas de qual etnia, religião ou o que for.

        Nem tudo é racismo, as vezes é outro tipo de ignorância mesmo.

        Espero ter sido claro
        Abraços!

        • Clayton, o discurso da brancofobia e da heterofobia, etc, é facilmente desmontável, não deve ser nossa preocupação.

          E quando vc fala “a verdadeira motivação” é que eu vejo um problema, pois não acredito que exista apenas uma, singular, nesse caso.

          De qualquer forma, obrigado pelo comentário e por acompanhar o trabalho. Um abraço!

          • Ultima resposta e prometo que paro de encher o saco haha.
            Esse é meu ponto, são discursos facilmente desmontáveis… Mas por quem tem cérebro, e se da ao “luxo” de pensar por si próprio. Mas quem não conhece pessoas, que seja por criação, ou fanatismo (politico e/ou religioso) que não pensa tanto por si, acaba sendo afundado pra esses caminhos de ignorância, por banalizar um assunto (e essa pode ser facilmente a próxima pessoa a cometer um ato de violência. Mas concordo contigo, a motivação dificilmente é única. Mas acredito também que quem chamou a policia nesse episódio lamentável, podia ser alguem apenas paranoica, que chamaria mesmo que fosse uma criança branca e protestante, como já aconteceu antes e não por ser islamofobica, como obviamente foi quem conduziu o interrogatório. Desculpe ter me estendido tanto, não encho mais o saco (sobre esse assunto hahaha)
            Abraços

          • Clayton, comentários educados não são “encheção de saco”, fique a vontade. Um abraço!

  • Correção: em “quem não conhece…” Deveria ter colocado um ponto de interrogaçao… Como estou escrevendo do celular, acabei me perdendo

  • Filipe, gostei do texto, mas me surgiu uma dúvida. Se os sudaneses não são árabes, por que o Sudão faz parte da Liga Árabe? Um abraço!

  • Atentando apenas à provocação “os terroristas venceram?”, eu “reprovocaria” com a seguinte pergunta: “Os terroristas caíram do céu pra geopolítica norte-americana?”, com o perdão do trocadilho…

  • “Seria o caso se o garoto tivesse dito que o relógio era, de fato, uma bomba, sendo que todas as fontes do caso afirmam que, desde o início, ele falava que era um mero relógio, inclusive para os policiais.”

    Errr, não. Porque se fosse assim, qualquer pessoa pega com uma hoax bomb que ele planejava colocar em algum lugar pra causar pânico pode alegar qualquer coisa que fosse pra se safar da punição. Seria uma lei cuja punição só aconteceria mediante confissão, basicamente, não faria sentido.

    Imagine o cenário: sujeito é um malandrops desses estilo fratboys porralocas nos EUA. Cria algum dispositivo colando placas mãe dentro de uma caixa, poe luzinhas, etc. Faz parecer uma bomba. Ele vai colocar na porta da galera da frathouse adversária pra dar um susto neles.

    No caminho o cara é parado por um policial. Policial nota a parada no banco traseiro. Nota que tem uma aparência estranha, pergunta o que é.

    “Ah, são só uns componentes de computador que eu eu achei e quero ver se posso usar no meu computador”

    Pronto. A lei fica inviável de executar no caso de um flagrante.

    Acho que tu não entendeu a letra da lei. O que define o hoax bomb não é a pessoa dizer “AE GALERA TO COM UMA BOMBA AQUI RSRSRS”. É ter consigo algo que possa ser razoavelmente confundido com uma bomba, com intenções maliciosas.

    Se alguém é pego com algo que é razoavelmente confundível com uma bomba, bastaria dizer “não, não é. É um projeto de ciências/é um prop pra um filme amador que estou fazendoi/são componentes de um computador que estou montando/etc etc etc etc”. A lei não teria nem propósito de existir. Seria impossível punir alguém com ela.

  • A propósito: hoax bomb não é nem “crime grave”. É um misdeamenor, não costuma sequer dar cadeia.

    Eu aconselho não falar de leis das quais você claramente não compreende. Você fica soando meio ignorante, sei lá. Mina todo o seu argumento.

  • Pingback: Sobre bater boca no Twitter e brigas entre canais | Xadrez Verbal

Deixe uma resposta para Lucas Cancelar resposta

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.