O que você precisa saber para entender a reaproximação de Cuba e EUA

Caros leitores, o post de hoje demorou para sair, mas é duplo! Temos aqui o texto analisando a abertura cubana, seu futuro e suas relações com os EUA, e temos também o vídeo com a História da relação entre os dois países.

Como discutido ontem mesmo aqui no Xadrez Verbal, Cuba e os Estados Unidos sinalizaram a retomada de relações políticas e a normalização de suas relações comerciais. No post anterior estão as íntegras dos discursos de Raúl Castro e de Barack Obama, assim como uma breve análise do anúncio e da participação do Papa Francisco no processo. Dando sequência ao debate, como se deu essa reaproximação política entre EUA e Cuba? O que ela significa e quais os próximos passos?

A origem do rompimento das relações entre Cuba e EUA é sabidamente a Revolução Cubana de 1959, liderada por Fidel Castro e por “Che” Guevara. O movimento que derrubou o ditador Fulgêncio Batista, entretanto, não era explicitamente comunista. Possuía muito mais elementos de nacionalismo e anticolonialismo. A economia cubana era ligada visceralmente ao capital dos EUA, um rompimento seria traumático tanto para a economia cubana quanto para os investimentos dos EUA. Sabendo disso, o então presidente dos EUA, Dwight Eisenhower, reconheceu o governo de Fidel.

Além disso, a primeira viagem de Fidel como líder cubano foi aos Estados Unidos, onde foi recebido pelo vice-presidente, Richard Nixon. O que realmente gera a distensão e o rompimento entre os dois países é a nacionalização em massa de empresas e investimentos estrangeiros em Cuba; 80% desses, dos EUA. Buscando proteger seu capital e sua influência, e acreditando que a ilha seria forçada ao diálogo, o governo dos EUA decreta o embargo comercial unilateral. O efeito é contrário.

Fidel Castro e Richard Nixon apertam as mãos.

Fidel Castro e Richard Nixon apertam as mãos.

Dentro da lógica da Guerra Fria, com a disputa entre duas superpotências que buscam aumentar suas respectivas esferas de influência, os EUA jogam Cuba “no colo” da influência soviética. A URSS torna-se o maior parceiro econômico de Cuba e o governo autoritário de Castro ganha contornos do autoritarismo soviético. É apenas em 1962 que Cuba é suspensa da Organização dos Estados Americanos, após seu governo declarar o “caráter socialista” da Revolução Cubana. Dada sua posição geográfica privilegiada, ao lado da costa leste dos EUA e controlando o tráfego marítimo no Caribe e no Golfo do México, Cuba torna-se importante peça no tabuleiro da Guerra Fria.

No início dos anos 1960, dois episódios chave: o fomento da resistência anti-Castro por parte dos EUA, financiando a invasão da Baía dos Porcos, e a Crise dos Mísseis de 1962, quando o mundo chegou mais perto de um conflito nuclear durante a Guerra Fria. Pelos próximos cinquenta anos, o espírito da relação entre EUA e Cuba seria esse, fruto da Guerra Fria. Um isolamento político e comercial, um racha ideológico e atrito constante. Considerando que a Guerra Fria ideológica acabou duas décadas atrás, a obsolescência e anacronismo dessa relação estava óbvia.

Por qual motivo, então, Cuba e EUA teriam mantido essa fissura por tanto tempo após o final da União Soviética? Pois beneficiava ambos. Os EUA simbolizam o colonialismo e o imperialismo combatido por Fidel, sua existência justifica a perenidade de seu regime. Em contrapartida, Cuba debilitada e hostil serve aos diferentes governos recentes dos EUA como plataforma política, seja ideológica, seja de propaganda. Ter um inimigo, um contraste, fornece propósito político.

Além disso, as relações com Cuba, hoje, cumprem grande papel na política doméstica dos EUA. Cubanos e seus descendentes somam dois milhões nos EUA, com cerca de 70% desses vivendo na Flórida, o estado mais perto de Cuba e essencial nas eleições do país. Dada a representatividade da comunidade, conseguem eleger, ou influenciar as eleições, de políticos, especialmente no legislativo. Como em sua grande maioria são anti-Castro, defendem uma política ainda mais ferrenha em relação à Cuba e integram as alas mais radicais do Partido Republicano. Ou seja, a forma com que os EUA lida com Cuba não afeta apenas sua política externa, mas também os votos internos.

Evento do candidato republicano recém-derrotado, Mitt Romney, com o senador da Flórida Marco Rubio, representante dos cubanos republicanos.

Evento do candidato republicano recém-derrotado, Mitt Romney, com o senador da Flórida Marco Rubio, representante dos cubanos republicanos.

A reaproximação entre os dois países e a superação dessa relação obsoleta começa em 1999, com Bill Clinton, que autoriza um intercâmbio esportivo entre os dois países e aperta as mãos de Fidel Castro nas Nações Unidas. Durante os governos de George W. Bush, o governo dos EUA melhorou algumas condições de diálogo entre indivíduos. Aumentaram as cotas de envio de ajuda financeira para familiares e facilitaram a obtenção de vistos de turismo para cubanos visitarem seu país, por exemplo. Nessas ações ficaram cristalinas a influência política dos cubanos republicanos: queremos melhores condições para os indivíduos, não relações com Castro, tanto que o embargo tornou-se ainda mais rígido.

A mudança começa em 2006, quando Fidel Castro se afasta por problemas em saúde, em benefício de seu irmão, Raúl Castro. Raúl torna-se líder cubano pleno em 2008. Imediatamente inicia uma reforma da economia de consumo, abrindo o mercado cubano e incentivado a pequena produção rural. Também inicia um processo de relações exteriores e abandona o discurso conflituoso contra os EUA, adotando um tom amigável; em 2009, a suspensão de Cuba da OEA é revogada. Além disso, sinaliza a abertura política, afirmando que deixará a vida pública em 2018, quando seu segundo mandato (eleito pelo legislativo) termina.

Nessa expansão dos laços cubanos, Raúl Castro assina diversos acordos com a China e visita o gigante asiático. Especialmente, abre o país para investimentos e parcerias estrangeiras, o que inclui a dianteira brasileira no porto de Mariel, já debatido aqui no Xadrez Verbal. Significativamente, foram iniciadas negociações entre Cuba e a União Europeia para um acordo comercial. E as relações de Cuba com países como a Coreia do Norte? Um relatório da ONU declarou que o porto de Mariel foi utilizado para o contrabando de armamento para o regime totalitário coreano, o que gerou ainda mais críticas ao projeto brasileiro.

Raúl Castro e Xi Jinping, presidente chinês, na visita de Castro ao país asiático

Raúl Castro e Xi Jinping, presidente chinês, na visita de Castro ao país asiático

Além do episódio envolvendo a Coreia do Norte ter sido anterior à participação brasileira no porto de Mariel, é justamente tirando Cuba do isolamento, parar de tratar Cuba como um “pária”, que se evita relações com regimes armamentistas. Cuba está em processo de franca abertura tem mais de uma década. Além de sua posição geográfica privilegiada, já mencionada, que favorece iniciativas como a do porto de Mariel, Cuba é, economicamente, extremamente atraente para investimentos e parcerias. Possui grande população e, especialmente, uma população com altos índices educacionais.

Quanto maior for essa abertura e quanto mais intercâmbio internacional, melhores serão as condições para a solução dos dois grandes problemas internos à Cuba: sua redemocratização política, com pluripartidarismo e eleições amplas, e investigações de violações de direitos humanos. A lógica é simples: quanto mais isolado um país, mais fechado ele se torna, logo, mais opressor da “porta para dentro”. Fazer negócios com Cuba não é uma conspiração comunista do Foro de São Paulo como dizem alguns setores conservadores brasileiros: é bom senso e a solução.

Resta então o último obstáculo internacional: o embargo dos EUA. E aqui deve-se deixar algumas coisas claras. Primeiro, é um embargo ilegítimo, condenado diversas vezes nas Nações Unidas, inclusive pelos países europeus aliados aos EUA. Segundo, costuma-se relativizar o embargo, afirmando que ele afeta apenas empresas dos EUA, o que é falso. É notória e sabida a pressão política por parte dos EUA para que outros países não “violem” o embargo, além de ele proibir triangulações que envolvam Cuba ou seus nacionais. Finalmente, em 1992 e em 1995, o embargo tornou-se lei ordinária nos EUA, ou seja, sua revogação depende de processo legislativo. O obstáculo, então, serão os republicanos, especialmente os republicanos cubanos, que já protestaram contra a reaproximação.

Obama e Raúl Castro cumprimentam-se no funeral de Nelson Mandela, em 2013.

Obama e Raúl Castro cumprimentam-se no funeral de Nelson Mandela, em 2013.

Os pronunciamentos de 17 de dezembro de 2014 são importantíssimos. Sinalizam a retomada das relações políticas entre EUA e Cuba e a normalização de suas relações econômicas. Barack Obama também se comprometeu em propor a retirada de Cuba da lista de “Estados patrocinadores de terrorismo”, em que foi colocada pelos EUA em 1982. Diversas outras medidas foram sinalizadas pelo governo dos EUA, que afetam relações cotidianas, humanitárias e civis. Raúl Castro, em suas palavras, priorizou o assunto do embargo, certamente o grande espinho restante. Se temos um divisor de águas, ainda não sabemos. A boa notícia é que uma relação obsoleta e anacrônica foi superada, o que incentivará a abertura política cubana e inserindo o país pelo diálogo. Uma situação mais digna do atual contexto da política internacional.

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assinaturaFilipe Figueiredo, 28 anos, é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.

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