69ª Assembleia Geral da ONU – A Ucrânia como vítima

Acompanhe o restante da cobertura da 69ª Assembleia Geral da ONU.
Caros leitores, damos sequência aos textos sobre o debate na abertura da 69ª Assembleia Geral da ONU, com o segundo texto do dia. Este texto fará uma análise cruzada dos pronunciamentos do Primeiro-ministro da Ucrânia, Arseniy Yatsenyuk, e do Ministro de Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov, sobre a crise na Europa oriental. As partes do pronunciamento de Lavrov que tratam especificamente do Oriente Médio, Norte da África e cooperação internacional estarão em outro post, que juntará os discursos dos países do BRICS.
A Ucrânia pronunciou-se na ONU no dia 24 de Setembro, Quarta-feira passada. Bem curto, cerca de dez minutos apenas. Afirmou que seu país sabe o que é terrorismo, na prática, pois o conflito na Ucrânia não é doméstico. A Ucrânia possui diferenças internas “como qualquer outro país”, mas a origem do conflito é a invasão pela Federação Russa, um membro permanente do Conselho Segurança, o que é “absolutamente e totalmente inaceitável”.
A maior parte do discurso de Yatsenyuk foi nesse tom, até pessimista; chegou até a falar “diretamente” com Vladimir Putin, conjecturando que “Sr. Putin, você pode até ganhar a luta contra as tropas”. Lamentou a queda do avião comercial da Malaysia Airlines e pediu ajuda para punir os responsáveis por “esse odioso crime contra a humanidade”. Dois pontos, porém, se destacam. O primeiro é no início do discurso.
Transcrevo: “Vinte anos atrás, a Ucrânia abandonou seu arsenal nuclear, o terceiro maior do mundo naquele momento. Em troca, recebeu a garantia de sua integridade territorial e soberania. A Federação Russa assinou o memorando desse acordo; mesmo assim, quebrou essa promessa. Nós estamos comprometidos com nosso programa de não-proliferação nuclear, mas nós precisamos de garantias de integridade territorial, segurança e independência”.
No máximo, Yatsenyuk está blefando com a paranoia nuclear, já que, hoje, dificilmente a Ucrânia teria como empreender um programa nuclear bélico, dados os custos, financeiros e políticos, envolvidos. O país possui capacidades nucleares e certamente possui cientista com experiência na área, mas a citação é mais uma forma de pressão do que possibilidade concreta. O segundo ponto é o pedido para que as sanções sejam mantidas até que “negociações sérias” aconteçam; ou seja, com a retirada de tropas russas, inclusive da Crimeia, e o compromisso russo de cumprir os doze pontos propostos pela Ucrânia nas conversas de paz.
A Federação Russa discursou no Sábado, dia 27 de Setembro. O discurso também não foi muito longo, dezesseis minutos. E, no que concerne ao atual momento de crise, usou o argumento que muitas vezes foi citada aqui nesse espaço: um precedente foi aberto, anteriormente, pelos EUA e pela OTAN. “Essa aliança tentou decidir por todos o que era bom e o que era maligno. O governo dos EUA declarou abertamente que acreditava ser seu direito o uso unilateral da força para garantir seus interesses. A intervenção militar tornou-se a norma”.
Cita então alguns casos, como os recentes ataques à Líbia e a invasão do Iraque, ambas desobedecendo a resoluções do Conselho de Segurança. Cita também, em primeiro lugar, os ataques a então República Federal da Iugoslávia; embora não cite explicitamente o Kosovo, fica claro o paralelo com a Crimeia, da separação unilateral de uma região de um país. Comenta que apenas esforços diplomáticos impediram uma intervenção na Síria. “Para muitos”, segue Lavrov, o objetivo de várias “revoluções coloridas” (menção inequívoca à Revolução Laranja ucraniana de anos atrás) era mudar “regimes inadequados ao Ocidente” e causar caos e instabilidade. A Ucrânia foi mais uma vítima dessa “política arrogante”.
Lavrov prosseguiu, acusando o Ocidente de restaurar o clima da Guerra Fria, com repetidas violações da Carta da ONU e do Ato de Helsinque, após declarar vitória e “o fim da História” (será que Fukuyama assistiu?); recusa em cooperar com a Rússia na matéria de segurança europeia, afirmando que isso era prerrogativa da OTAN; insistência na expansão da OTAN rumo ao leste europeu, apesar de promessas contrárias e a violação de diversos acordos e resoluções recentes.
Os EUA e a União Europeia apoiaram, segundo Lavrov, um golpe de estado na Ucrânia e justificaram todos os autoritarismos do “autoproclamado” governo de Kiev. Essas autoridades decidiram suprimir, com a força, o desejo do povo ucraniano de manter sua cultura e seus valores; uma referência aos ucranianos do leste do país. E teria sido essa situação que incentivou a Crimeia a tomar “seu destino em suas próprias mãos” e declarar sua autodeterminação. O cessar-fogo assinado entre os Presidentes Petro Poroshenko e Vladimir Putin pode criar uma oportunidade para resolverem a crise.
Lavrov conclui com um resgate da História e um pedido. Como condição para estabelecer relações diplomáticas com a então União Soviética, em 1933, o governo dos EUA exigiu que Moscou garantisse não interferência em assuntos domésticos e políticos dos EUA. Washington temia, segundo ele, um “vírus revolucionário”, e as garantias foram registradas, na base da reciprocidade. “Talvez faça sentido retomar” e reproduzir essa exigência dos EUA em uma escala universal.
“A política de ultimatos e a filosofia da supremacia e da dominação não cumpriam os pré-requisitos do Século XXI” e não colaboravam com o desenvolvimento de uma ordem mundial democrática e policêntrica. Para exemplificar a esterilidade de uma política litigiosa de imposição de sanções, Lavrov citou Cuba; talvez uma pequena provocação. Como dito anteriormente, o restante do discurso de Lavrov será abordado em outro texto. Surpreendentemente, Ucrânia e Rússia concordaram, na ONU: para ambos, a Ucrânia é uma vítima. Discordam apenas de quem é o provocador.
Para ler o pronunciamento ucraniano, na íntegra, em inglês e em PDF, clique aqui. Para ler o pronunciamento russo, nos mesmos termos, clique aqui. O que já foi publicado sobre a crise na Ucrânia e na Crimeia no Xadrez Verbal?
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Para ficar informado, você pode checar a programação do debate no site da 69ª Sessão da Assembleia Geral da ONU; notícias e releases no site da Assembleia Geral da ONU; e assistir aos pronunciamentos e demais coberturas no site oficial das Nações Unidas UN Web TV.
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