Os neonazistas e o retorno da ultradireita: A maior ameaça na Ucrânia?
Caros leitores,
Retomo hoje o assunto da Ucrânia. Certamente o leitor já deve ter lido algumas coisas sobre o assunto por aí, talvez não queira ler “mais um” texto sobre a Ucrânia, mas peço que siga em frente, o texto não será muito grande. Já abordei o tema aqui, além de ter feito um Xadrez Dominical com referências culturais do país. Além desses dois links, aqui mesmo do Xadrez Verbal, recomendo bastante a leitura desse texto, Algumas Considerações Sobre a Crise na Ucrânia, do blog Um Pouco de Prosa, para compreensão do tema.
Como vocês já devem saber, o agora ex-Presidente ucraniano (eleito democraticamente, lembro), Viktor Yanuokovich, mesmo após costurar um acordo de conciliação com a oposição ucraniana, sumiu depois de uma radicalização dos protestos e foi removido do cargo pelo Parlamento (não conheço a Constituição ucraniana, não sei se tal processo foi legal), que libertou a líder oposicionista Iúlia Timochenko (condenada por corrupção) e nomeou um de seus principais aliados, Alexandr Turchinov, como chefe do governo provisório que tentará, minimamente, estabilizar o país até as eleições de Maio.
Yanukovich também foi declarado “criminoso foragido” e renegado por seu próprio partido. Como resultado, temos um novo governo, provisório, que afirma que o país está falido e pede ajuda financeira para os EUA e para a Europa, presente desde o slogan do movimento, Euromaidan. Tal governo declara que uma de suas prioridades será a integração com a União Europeia, em um discurso carregado de tons liberais. Mas tal discurso omite a faceta que dominou o movimento, especialmente em seus últimos dias: o do nacionalismo radical ucraniano.
Tal nacionalismo é dos principais argumentos do “outro lado”, que aponta esse governo provisório de discurso liberal como fruto de um golpe de Estado, com o serviço sujo executado por milícias e grupos de orientações neonazistas, ligadas ao partido Svoboda, de extrema-direita (e, agora, relevante no cenário político doméstico). Os símbolos desses grupos estavam presentes em quase todas as fotografias tiradas depois do dia 20 de Fevereiro, como as bandeiras rubro-negras do Exército Insurgente Ucraniano, da Segunda Guerra Mundial, e os tridentes estilizados, representando o símbolo nacional ucraniano. Daí concluiu-se, seja com júbilo, seja com calafrios, que a extrema direita nacionalista estava de volta e no comando, já que “expulsou” Yanukovich.
Existe, entretanto, outra perspectiva. Como explicado nos mapas dos textos linkados na introdução desse post, a Ucrânia atrai diversos interesses geopolíticos. Além do interesse dos EUA, em puramente enfraquecer a Rússia (e que se f*da a União Europeia. Nessas palavras), e da EU, existe o interesse russo, que é explicado nos links acima, e explicitado recentemente tanto pelo seu Premiê Medvedev, que questionou a legitimidade do governo provisório, quanto pelo Presidente Putin, que delicadamente lembrou que tem duas poderosas cartas na manga em relação ao país vizinho: sua dívida com a Rússia e sua dependência do fornecimento energético russo.
Como isso se relaciona com a situação interna ucraniana? Oras, boa parte da população ucraniana se identifica com a cultura russa, euroasiática, como já explicado por aqui. Pode ser pela religião ou pelo idioma. Inclusive, essa população foi a base eleitoral de Yanukovich. A presença militar russa no país ainda é enorme, especialmente na Criméia, tema de extensiva matéria da revista Time, que demonstra que líderes locais inclusive pediram uma intervenção russa no país. A divisão da Ucrânia fica explícita, seja nos interesses internacionais sobre o país, seja na perspectiva sobre o movimento político do último mês, seja na população.
Consequências de tal divisão? Na matéria do site Opera Mundi que relata os sentimentos do Premiê Medvedev, ao final do texto, consta a informação de que Angela Merkel, chanceler alemã e braço forte da UE, conversou com Putin. Sobre? A manutenção da unidade territorial ucraniana. Esse é o meu ponto, caro leitor. Dentre todos esses interesses, ideologias e perspectivas entrelaçados, a verdadeira Espada de Dâmocles que paira sobre a Ucrânia é a guerra civil, que certamente desestabilizaria toda a região do Leste Europeu e do Cáucaso. E ninguém quer que o Cáucaso se torne “os novos Bálcãs”.
Os tais grupos neonazistas que causaram temor e estardalhaço são presentes apenas na região Ocidental do país, próxima da fronteira com a Polônia, e nas grandes cidades centrais. Estavam longe de serem a maioria dos protestantes, embora bem armados e belicosos. Com a sempre sedutora, ou amedrontadora, proposta estética característica do nazi-fascismo, com bandeiras, cores, posturas e símbolos, acabaram criando mais impacto do que suas capacidades permitem. Além disso, tais grupos tiveram apenas o apoio, ou o silêncio permissivo, da maioria dos protestantes devido um único fator que os une: o sentimento anti-russo (devido uma série de motivos históricos e étnicos, explicados nos links introdutórios).
Com uma eventual reaproximação da Ucrânia com a União Europeia pelos liberais do partido de centro-direita Batkivshchyna, tal fator de amálgama seria diluído, o que levaria ao consequente enfraquecimento dos grupos mais extremados, que se tornaram mais famosos por derrubar estátuas de Lênin do que por outra coisa. Quando a poeira baixar, provavelmente sua teatralidade deixará de atrair os desproporcionais holofotes. Os grupos neonazistas ucranianos são mais uma evidência do choque social do que promotores ou arquitetos de tal conflito.
Agora, e se tal reaproximação não ocorrer e o sentimento anti-Rússia permanecer? Ou se as futuras eleições forem vencidas novamente por um candidato pró-Moscou, que não consiga lidar com o delicado equilíbrio imposto ao país? Ainda, se a Rússia fizer algum tipo de intervenção, por exemplo, econômica (o que é muito improvável)? Aí provavelmente não teremos mais grupos neonazistas nas ruas, mas sim, como núcleo de uma força antagônica de outra em um país rachado num conflito de grandes proporções, que poderia levar a uma eventual divisão da Ucrânia, tal como a Iugoslávia das décadas passada e retrasada.
Tal cenário certamente não interessa Putin nem Merkel. Os EUA? Difícil dizer, já que Obama fez pouquíssimos comentários abertos sobre o tema. Mas o país não seria tão prejudicado quanto a Europa, isso é claro. Por isso, acredito em uma eventual concertação, ao menos momentânea, para garantir o mínimo de estabilidade em um país quebrado financeiramente, dividido socialmente e em cenário perigoso politicamente. Uma eleição em Maio que eleja um governo de coalizão, que saiba dosar os radicalismos, pode ser o sopro de esperança para a Ucrânia como conhecemos hoje.
Os neonazistas ucranianos não representam a sociedade ucraniana. Resgatam o velho nacionalismo, como muitos da juventude que se levantou após 2008 (data que é costumeira aqui no Xadrez Verbal, e ainda será tema de muitas palavras), mas vocalizam apenas um sentimento anti-russo, compreendido por muitos como expressão de um povo dominado pelo vizinho imperialista. Mas causam mais estardalhaço do que realmente podem. Os acontecimentos na Ucrânia não implicam necessariamente que o perigo do nazi-fascismo está voltando. Isso só vai acontecer onde os outros falharem. O risco imediato ali é outro: a ameaça do retorno das imagens de cidades destruídas e de vidas acabadas, o fantasma da guerra civil.
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Algumas recomendações de links não presentes no texto são a entrevista com o historiador Moniz Bandeira, em relação aos interesses geopolíticos na região, e as fotos, em alta resolução, dos protestos em Kiev.
Além disso, você pode ler sobre a Iugoslávia, sua guerra civil, o nazismo e a relação com a União Europeia (todos elementos presentes no atual contexto), na série de cinco textos já publicados aqui, intitulados A Iugoslávia na União Europeia.
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uma vez mais fantástico, o senão fica por conta do não link em “Espada de Dâmocles” que me obrigou a wikepdiar.
É um blog sobre política e história, não caberia colocar link em uma expressão de uso bastante difundido. Vai estudar, Junior.
bastante difundido? sério? tanto assim?
Bela reflexão! Apesar de achar que a “teatralidade” não atrai “desproporcionais holofotes”. O foco realmente pode não ser os neo-nazistas, mas eles estão bem infiltrados nessa guerra civil, o que justifica alguns holofotes.
Ótimo post! Muito bem contextualizado. A volta de uma extrema direita pode não ser o maior risco da Ucrânia no momento, o que não havia pensado antes, mas ainda assim assusta, se levarmos em conta como ela vem crescendo em diversas nações da UE.
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