A Bolívia ia criminalizar o Cristianismo?

No mais recente podcast do Xadrez Verbal foi comentado o tema do novo código penal boliviano, que é alvo de diversos protestos. Muitos ouvintes pediram para que o assunto fosse disponibilizado também em separado, para que pudesse ser melhor compartilhado e consultado, e é para isso que este texto servirá, incluindo alguns complementos. Dentre os críticos da legislação estão as igrejas evangélicas e parte da Igreja Católica Apostólica Romana, que alegam que a atividade religiosa, a conversão e o proselitismo tornariam-se proibidos, puníveis com prisão, o que até inviabilizaria a atividade dessas igrejas. Esse aspecto das críticas chegou ao Brasil e disseminou-se rapidamente em canais também ligados à algumas igrejas, assim como páginas de caráter anti-esquerda em geral. A questão é que o sensacionalismo e distorção desse lado brasileiro da fronteira não transmitem os eventos e as discussões de maneira honesta. Algo que o homem mais poderoso do mundo atualmente chamaria de “fake news”.

Bolívia

Duas breves contextualizações. A primeira é a de que Evo Morales é uma figura política, hoje, além de contestado dentro de seu próprio país, isolado no continente. O único regime sul-americano que possui relações próximas com La Paz é o de Caracas, especialmente depois do racha entre Rafael Correa e Lenin Moreno no Equador. E por qual motivo contestado dentro da Bolívia? Vários motivos, mas o principal é o fato de ele ter declarado que irá buscar uma terceira reeleição para um quarto mandato. Mesmo após a população boliviana ter explicitamente rejeitado isso em referendo. Usando uma manobra jurídica, em uma corte dominada por seus apoiadores, que intencionalmente nubla a diferença entre direitos humanos e direitos civis, Evo Morales poderá ficar dezenove anos consecutivos no comando de um país presidencialista. Então, a mobilização de opositores ao seu governo é cada vez maior e adota diversas bandeiras.

A segunda é de que a Bolívia é um país de população esmagadoramente cristã. Cerca de 76% da população se declara católica, com outros 17% adeptos do protestantismo, para um total de 93% da população identificando-se como cristã. O país, assim como o Brasil, é marcado pelo sincretismo religioso, com aspectos religiosos nativo-americanos presentes. A questão aqui é: uma lei que praticamente proibisse o cristianismo ou a atividade religiosa seria um problema eleitoral, um problema social e gênese de protestos certamente maiores e mais intensos.

A polêmica sobre a lei

Um esclarecimento deve ser feito em relação ao dito no podcast: o novo código penal não está em vigor, como dito, mas já foi sim aprovado pelo parlamento boliviano, em dezembro de 2017. E qual seria o problema do projeto legislativo? Pela repercussão brasileira, talvez uma mistura de ingenuidade em peças jurídicas com falsos cognatos em castelhano, e uma dose de um dos problemas das redes sociais, que é o compartilhamento de materiais rasos sem a devida checagem. No caso, estou falando, é claro, de páginas de jornalismo, comunicadores referência na área (como youtubers de grandes canais), etc.

A lei pode ser acessada na íntegra por quem desejar. Em seu Capítulo III, Seção I, Artigo 88, a lei diz, no original:

ARTÍCULO 88. (TRATA DE PERSONAS) I. Será sancionada con prisión de siete (7) a doce (12) años y reparación económica la persona que, por sí o por terceros, capte, transporte, traslade, prive de libertad, acoja o reciba personas con alguno de los siguientes fines:

Então lista catorze situações, com a décima primeira grafando, no original: 11. Reclutamiento de personas para su participación en conflictos armados o en organizaciones religiosas o de culto;

Primeiro ponto. Um artigo legislativo não é estanque em sua leitura, deve ser levado em consideração o preâmbulo da lei e seus trechos internos. No caso, o Capítulo III trata de crimes contra a dignidade e a liberdade humana. A seção I, contra a dignidade. Segundo ponto, o termo “trata de personas” pode ser enganador, especialmente para quem acredita que entende castelhano. Os famosos falsos cognatos. O trecho foi traduzido com a ajuda de um amigo professor do idioma, que enviou a referência para a palavra “trata”.

De acordo com o Diccionario de la lengua española da Real Academia Espanola, Edición del Tricentenario, Actualización 2017, “TRATA – De tratar ‘comerciar’. 1. f. Tráfico que consiste en vender seres humanos como esclavos.”. Ou seja, esse artigo se refere ao tráfico, venda, comércio, privação de liberdade de seres humanos, e lista as finalidades que abrangem esse crime, desde mendicância forçada até o falsamente polêmico inciso 11. Uma pessoa poderá ser presa caso comercie, escravize, compre ou venda uma pessoa, privando-a de sua liberdade em prol de um conflito armado ou de organizações religiosas. Uma conversão forçada de uma comunidade indígena, por exemplo.

Não há nenhuma menção ao proselitismo religioso; por exemplo, a distribuição de panfletos ou a realização de cultos, dentre outros. Talvez seja interessante mencionar que o mesmo código penal considera um agravante para os crimes de furto, roubo e dano ao patrimônio caso essas atividades sejam realizadas contra locais religiosos ou de culto. No caso do furto, um furto “comum” é punido com reparação econômica e apenas os furtos com agravante são punidos com prisão. Ou seja, uma pessoa que furte uma igreja na Bolívia seria presa, com uma pena maior.

Por qual motivo temos protestos? A lei é perfeita?

Longe disso, ela já foi modificada e enfrenta diversos outros protestos. Os modificados foram os 205, após greves e protestos de médicos, e o 137, após protestos e greves de motoristas. Ambos os artigos permitiriam a prisão de profissionais por erros médicos ou acidentes, responsabilizados individualmente.

Outros artigos sob protesto são o aumento do limite de dosagens de entorpecentes permitidas para uma pessoa ser caracterizada como “microtraficante”, uma pena mais branda; associações de moradores protestam contra os artigos 293 e 294, que tornariam mais difíceis a organização de protestos, podendo criminalizar manifestações; e os artigos 309, 310 e 311 são alvos de protestos de jornalistas, tema também comentado no podcast. Os artigos citados tipificam os crimes de injúria, calúnia e difamação, e profissionais de imprensa alegam que tais artigos protegerem figuras políticas de matérias jornalísticas críticas. Além disso, o artigo 246 criminaliza o uso de dados pessoais ou “informação confidencial” que afetem a “imagem e a dignidade de uma pessoa”. Em tempos de vigilância em massa, podemos pensar em muitos casos no qual esse artigo protegeria a vítima, mas também casos em que protegeria figuras políticas de, por exemplo, um vazamento de informação tida como confidencial. Como planilhas de empreiteiras.

E os cristãos bolivianos que protestam? 

Embora a especulação do falso cognato não seja possível, a articulação opositora ao governo de Evo Morales e seu partido (que domina o parlamento) contribui na explicação. Ainda mais, recentemente o governo boliviano alterou as leis sobre a criminalização do aborto, autorizando o procedimento em um número maior de casos. Obviamente, essa mudança legislativa que liberalizou o aborto em certas situações colocou o governo e grupos religiosos em choque. Os protestos contra o atual projeto do código penal são, de certo modo, uma extensão das críticas recente no tema do aborto. O clima de animosidade exacerba o que, para alguns juristas bolivianos, em um painel de uma das principais emissoras bolivianas, seriam até mesmo leis “mal redigidas”.

Na Bolívia, hoje, dia 21 de Janeiro de 2018, Evo Morales anunciou que o novo código está em suspenso até que diálogos com as camadas afetadas da sociedade resolvam os pontos afetados. A conclusão sobre a repercussão do caso no Brasil, entretanto, é a de que ela é sensacionalista e desinforma. O contrário do que deveria ser feito. Alguns mais esperançosos podem desejar retratações dos veículos e páginas.


assinaturaFilipe Figueiredo é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.


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24 Comentários

  • Explicação excelente e equilibrada. Parabéns. Vou compartilhar.

  • Ótimo como sempre Filipe, obrigado por estar sempre nos ajudando a entender melhor essas situações, esta sendo um forte combatente ao pensamento em manada (como você disse no Podcast). Um abraço.

  • Obrigado pela explicação Filipe. Claro e direto!! Compartilhando!

  • Assim não sou professor de castelhano mas me parece que a tradução de “trata” foi escolhida a dedo, dentre as possíveis para mudar o sentido do que se está sendo realmente falado ali, a maioria dos falantes da língua não traduziria assim. E os próprios nativos não entenderam assim.

    • “Trata de personas” é o termo jurídico usado em castelhano para se referir ao tráfico de pessoas. A Wikipédia tem uma página pra isso.

      https://es.m.wikipedia.org/wiki/Trata_de_personas

      O verbo “tratar” é bem polissêmico, tendo inclusive o mesmo significado de “fazer referência a alguma coisa” que existe em português e que foi o objeto da interpretação equivocada aqui no Brasil.

      Mas, como disse o Xadrez Verbal, a lei deve ser levada em consideração em seu contexto como um todo. Estando presente no capítulo que fala sobre a dignidade humana e considerando que o suporte textual seja “um código criminal” oriundo do discurso juridico, a interpretação é direcionada para o sentido do comércio mesmo.

  • Caramba, adorei esse artigo!
    Ouvi por terceiros essa história e fiquei perplexa, mas agora entendi todo o mal entendi!
    Perfeito! As pessoas com seu costume de proferir coisas sem ter certeza que a informação é verdadeira é deprimente.
    Leiam mais por favor brasileiros! Muito mais!

  • Ultimamente tenho me interessado bastante por essa modalidade de falácia ou sofisma divulgadas pelos fake. Hoje vi um filme aterrador. Muito sangue numa igreja supostamente boliviana. Então caí como um patinho e encaminhei o video para uns amigos. E olha que eu havia rebatido a versão e originalidade da tal lei. Aguardo os próximos capítulos

  • Ainda bem que passei por aqui antes de saber desse assunto por outros meios

  • Ai, o povo adora polemizar tudo. Obrigada por explicar tudo.. Precisávamos de mais pessoas e sites assim. 👏👏👏

    • Stella, nao eh o povo que gosta de polemizar, vc n compreendeu a coisa… Isso é fake news criada e usada pela direita e grupos ligados aos americanos contra grupos ou governos que os americanos consideram inimigos.
      O escritor do blog enrolou bastante, foi prolíxo e deixou meio vago o pq da exitência de tal ‘notícia’, atribuindo a mesma a um erro de traduçao ..como por acidente.
      Você está equivocado blogueiro! Na verdade foi intencional !
      Sugiro ao escritor da matéria contextualizar a notícia com a verdade que é o Xadrez geopolítico jogado (de maneira suja) pelos porcos americanos.
      Esse jogo sujo tem sido usado em dezenas de países, inclusive foi algo fundamental no golpe de 2016 no brazil. É possível ainda entender o pq do artigo 88 § 11, se for observado o modelo mais recente de guerra hibrida e pseudo-primaveras criadas pelo império para gerar o caos (ex: Síria, Líbia etc).. Entendemos portanto que tal lei visa prevenir a ação beligerante e desestabilizadora por parte de potências estrangeiras que têm frequentemente efetuado tal tipo de ingerência nos últimos anos. Logo, tal lei protege a Bolívia e seu povo do caos e destruíção.

  • O bonifrate que escreveu esse texto é tão calhorda que representa bem a bancarrota brasileira.

  • Um texto prolixo, típico de académico brasileiro.

  • Se não ia criminalizar então por que ele suspendeu após tantos protestos?

    • Ian, sugiro que aprenda a ler. Não faz sentido tentar comentar se nem ler vc sabe! Alem de analfa, burro!

    • Suspendeu por conta de outras cláusulas e artigos que geraram outros protestos, como de transporte e de médicos. Isso está incluso no texto, amigo. “Outros artigos sob protesto são o aumento do limite de dosagens de entorpecentes permitidas para uma pessoa ser caracterizada como “microtraficante”, uma pena mais branda; associações de moradores protestam contra os artigos 293 e 294, que tornariam mais difíceis a organização de protestos, podendo criminalizar manifestações; e os artigos 309, 310 e 311 são alvos de protestos de jornalistas, tema também comentado no podcast. Os artigos citados tipificam os crimes de injúria, calúnia e difamação, e profissionais de imprensa alegam que tais artigos protegerem figuras políticas de matérias jornalísticas críticas. Além disso, o artigo 246 criminaliza o uso de dados pessoais ou “informação confidencial” que afetem a “imagem e a dignidade de uma pessoa”. Em tempos de vigilância em massa, podemos pensar em muitos casos no qual esse artigo protegeria a vítima, mas também casos em que protegeria figuras políticas de, por exemplo, um vazamento de informação tida como confidencial. Como planilhas de empreiteiras.”

  • Fiz praticamente todo o ensino fundamental e médio em La Paz. Posso dizer com propriedade que “TRATA DE PERSONAS”, na Bolívia, é interpretado como “Refere-se a pessoas”. O artigo usa o significado da língua espanhola, sendo que o próprio Evo faz questão de dizer que, na Bolívia, não se fala espanhol e sim, castelhano. Não sei qual significado o relator da lei quis usar. Porém, esse artigo 88 pode ser um tanto perigoso para um país onde há muitas escolas jesuítas onde os pais enviam os filhos a terem uma educação mais rigorosa em termos cristãos. Poderiam os filhos , então, denunciar a escola por cárcere privado? Eis a questão.
    Outro ponto é a respeito dos médicos poderem ser processados por erros médicos. Nada fora do normal, até aqui no Brasil é possível fazer isso. O problema é que lá, o médico deixaria de ter um respaldo do CRM. Qualquer advogado poderia formular uma denúncia e aí o médico teria que se virar nos 30 para se defender. O parecer do CRM poderia ser ignorado, pois, como diz o artigo, os médicos seriam responsabilizados individualmente.
    Não é por nada não, mas esse governo boliviano não é digno de confiança. O presidente destina verbas milionárias para projetos absurdos. Por exemplo: um museu em sua homenagem num povoado que nem saneamento básico tem, ou um prédio gigantesco (nova casa presidencial) numa área histórica onde seria proibida a construção do mesmo.

    • Olá David, fiquei curioso com sua observação e fui consultar outros dicionários. Todos apontam “trata” como tráfico.

      O Michaelis: https://xadrezverbal.files.wordpress.com/2018/02/michaelis.jpg

      O Oxford: https://xadrezverbal.files.wordpress.com/2018/02/oxford.jpg

      E o do jornal El Mundo: https://xadrezverbal.files.wordpress.com/2018/02/elmundo.jpg

      Já são quatro dicionários apontando o uso e a interpretação que está no texto. Além disso, a agência especializada da ONU fala explicitamente em “trata de personas”: http://www.acnur.org/que-hace/proteccion/trata-y-trafico-de-personas/

      Você poderia me enviar alguma referência sobre esse uso particular boliviano da palavra? Um abraço e obrigado

      • Olá Filipe, infelizmente não tenho referências. Não questiono os dicionários. Como você já demonstrou, TRATA DE PERSONAS refere-se ao comércio de pessoas – já que o comércio de jovens levadas a outros países com a promessa de emprego (mas com fins de prostituição) é um caso sério por lá. Talvez errei em dizer que É interpretado, mas o correto seria PODE ser interpretado – por causa do verbo “tratar”. Peço desculpas pela confusão. Mas só complementando, conversei com meu pai que mora em La Paz, ele me confirmou que a proposta do novo código penal foi suspensa por causa dos constantes protestos que estavam paralisando o país. Nessa proposta há muitos artigos (não sei quais) que eram contrários à Constituição e atingia a liberdade dos cidadãos de muitos setores como médicos, transportes e outros. Peço desculpas mais uma vez pela confusão.
        Abraço

  • Ola Felipe, sou boliviano e moro na cidade de La Paz.
    O asunto e esse mesmo, nosso goberno com a maioria do congreso na sua mão, faz o que quer. Por presão popular ja cairam as suas reformas. E este 21 de fevereiro teremos uma protesta nacional contra a reeleição do senhor Morales.
    Ótimo artigo!

  • Que pena que a Bolívia não está mesmo proibindo o proselitismo religioso. Esse seria um passo importante para qualquer país sul americano que busque um melhor desenvolvimento econômico, social, político e científico.

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