A agenda de Dilma Rousseff e os interesses brasileiros nos 70 anos da ONU

Se Dilma era criticada por falta de atenção à política externa ou declarações pouco incisivas, essa crítica não pode ser feita em relação aos últimos dias, com interesses brasileiros explicitados e defendidos
Em seus dias na ONU, Dilma Rousseff parece ter aprendido com diversos erros recentes, embora tenha repetido um comportamento muito criticado de 2014. A viagem presidencial começou na quinta-feira, com uma cheia agenda nova-iorquina. Na sexta-feira, o discurso do Papa Francisco na tribuna da ONU, seguido de um encontro com Hassan Rouhani, presidente do Irã, e abertura da Conferência para a Agenda de Desenvolvimento Pós-2015. No sábado, Dilma esteve na reunião da Cúpula do G4, em que teve papel decisivo na realização, e, ontem, falou no plenário da conferência que discutiu a nova agenda da ONU, participou de encontros sobre empoderamento feminino e sobre o clima. Ao término do dia, uma audiência privada com Bill e Melinda Gates. Finalmente, Dilma abriu o debate da 70ª Assembleia Geral da ONU em um discurso que uniu política externa e política doméstica.
A atual assembleia é esperada como um divisor de águas na história da ONU, o início de um processo de reformas institucional pedido por diversos países, incluindo o Brasil, por décadas. Nesse sentido, a viagem de Dilma começou otimista, já que, duas semanas trás, o documento A/69/L.92 colocou a reforma do Conselho de Segurança na pauta da 70ª assembleia. Foi a primeira vez que um documento oficial de pauta explicitou o tema da reforma do CSNU. Nesse clima de otimismo, foi realizada a primeira reunião de Cúpula do G4 em uma década. Em uma demonstração de que talvez Dilma esteja dando a atenção à política externa que não deu em seu primeiro mandato, a reunião foi consequência direta de seu trabalho. Foi na visita de Merkel ao Brasil, em agosto, que Dilma solicitou uma reunião de alto nível, mais acentuada do que a reunião ministerial desejada pela alemã.
O G4 é uma benção e uma maldição para o pleito brasileiro sobre o Conselho de Segurança. Ao reunir-se com Índia, Japão e Alemanha, o Brasil está alinhado com as maiores economias do mundo que ainda não possuem assento permanente no conselho. São das maiores populações e estão entre os quinze maiores orçamentos militares do mundo; a Índia é vista como uma potência militar e são países que regularmente contribuem com forças de paz da ONU, papel em que o Brasil foi elogiado por sua liderança no Haiti. Nas palavras de Narendra Modi, primeiro-ministro indiano, são as maiores democracias do mundo e locomotivas da economia global. A principal argumentação do G4 é por um CSNU mais representativo, que seja reflexo da atual política internacional, defendendo também membros permanentes africanos. Ao articular uma representação multirregional, entretanto, adquirem-se adversários também.
Cada potência regional possui um rival que sabe que a inclusão de um país do G4 agora significa o adiamento de seu próprio pleito. Argentina, México, Paquistão, Itália, Turquia e Coreia do Sul, dentre outros membros do grupo Unidos pelo Consenso, tornam-se então adversários do G4 como um todo. Teoricamente, Paquistão ou Turquia teriam poucos motivos para contestarem o Brasil; como fazem objeções à Índia e à Alemanha, o pleito brasileiro também é prejudicado. O problema maior, entretanto, é a China, membro permanente do CSNU, que contesta incisivamente a candidatura do Japão, tensão ainda mais acirrada nos últimos dias. No âmbito do BRICS, a China apoia Índia e Brasil, como visto na Declaração de Ufá, mas a presença japonesa influencia a posição chinesa sobre o G4.
Já em seu discurso sobre o clima e a agenda de desenvolvimento da ONU, Dilma elencou prioridades brasileiras sobre emissão de gases estufa, desmatamento e fontes renováveis de energia. É necessário, entretanto, manter o foco em uma frase presente no início do pronunciamento: “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, a tese de que países em desenvolvimento, embora tenham responsabilidade na governança climática mundial, não podem arcar com as mesmas consequências que os países ricos, que, em um acúmulo histórico, poluíram e desmataram mais. Essa tese, central nas posturas de Brasil e Índia, repetida em seu discurso de abertura da ONU, é, por motivos óbvios, conflituosa com as demandas especialmente da Europa. Ou seja, nada ainda foi desenhado para a COP21, em Paris, no final de 2015.
Na agenda bilateral, o encontro com Bill Gates e sua esposa, embora estranho ao olhar desavisado, possui explicações políticas e econômicas. Foram conversados temas como nutrição infantil e campanhas de vacinação, no Brasil e na África, considerando que a fundação Gates é das que mais faz doações no mundo. No campo político, Gates também desmentiu que a fundação estaria processando a Petrobras. O encontro bilateral mais importante, entretanto, foi entre Dilma e Rouhani. O Irã possui uma das vinte maiores populações do mundo e, hoje, a 29ª economia; dez anos atrás, o país era a vigésima maior economia global. Isso evidencia que as sanções econômicas impostas ao Irã cobraram seu preço, mas também demonstra que, com o acordo nuclear que prevê o fim progressivo dessas sanções, o espaço para crescimento é enorme.
Segundo o Itamaraty, entre 2002 e 2011, o comércio bilateral foi de US$ 500 milhões para US$ 2,3 bilhões. Em 2010, o Irã tornou-se o segundo maior comprador de carne do Brasil, produto importante da pauta comercial brasileira. Hoje, o intercâmbio comercial caiu para US$ 1,4 bilhão. Dias atrás, o chanceler Mauro Vieira esteve em Teerã e, no encontro em Nova Iorque, ficou acertada uma troca de visitas oficiais entre Dilma e Rouhani. O governo brasileiro faz bem em agir rápido e assegurar um papel na reinserção iraniana no comércio internacional, aproveitando os laços construídos entre os dois governos recentemente. E a relação bilateral alimenta o pleito internacional brasileiro, já que o Irã apoia a reforma do Conselho de Segurança e cada voto de um membro da Assembleia Geral é importante.
Ao abrir a Assembleia Geral, o pronunciamento de Dilma trouxe novamente os pontos de reforma da ONU e a agenda climática, essenciais ao momento e ao discurso brasileiro. Elencou diversos sucessos dos 701 anos de ONU, para contrapor que o mesmo sucesso não foi alcançado na segurança coletiva. Ao colocar que a crise de refugiados e o número de conflitos existentes no globo estão atrelados ao Conselho de Segurança pouco representativo, Dilma lembra as pessoas que seu cotidiano é afetado por essa discussão, vista muitas vezes como efêmera ou mera disputa de poder. Ao elencar crimes do autointitulado Estado Islâmico, Dilma foi incisiva: “não se pode ter complacência com tais atos de barbárie”. Certamente pela repercussão negativa de seu discurso de 2014, em que ela teria defendido o diálogo com o grupo; na ocasião, foi mal interpretada, cabendo ao então chanceler Figueiredo, atual embaixador nos EUA, o papel de bombeiro.
Outro ponto polêmico da fala de Dilma em 2014 se repetiu hoje: a abordagem de temas de política interna. Em situação delicada, com uma crise política no país, Dilma usou valores caros ao discurso internacional, como valores democráticos e inserção social, para falar de democracia e corrupção no Brasil, pacote fiscal e crise econômica. Certamente as críticas se repetirão, acusando de Dilma de usar sua posição de Estado para falar de temas de governo. Em seu encerramento, convidou “os cidadãos de todo o mundo” para as Olímpiadas de 2016, lembrando-se das funções inclusivas do esporte, e comentou a reinauguração dos painéis “Guerra” e “Paz”, de Portinari, na sede da ONU. A obra transmite a mensagem de refugiados, de vítimas de guerra, uma mensagem que permanece atual sobre “todos os anônimos que buscam a ONU”. Se Dilma era criticada por falta de atenção à política externa ou declarações pouco incisivas, essa crítica não pode ser feita em relação aos últimos dias, com os interesses brasileiros explicitados e defendidos.
Filipe Figueiredo, 29 anos, é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.
Como sempre, comentários são bem vindos. Leitor, não esqueça de visitar o canal do XadrezVerbal no Youtube e se inscrever.
Caso tenha gostado, que tal compartilhar o link ou seguir o blog?
Acompanhe o blog no Twitter ou assine as atualizações por email do blog, na barra lateral direita (sem spam!)
E veja esse importante aviso sobre as redes sociais.
Caros leitores, a participação de vocês é muito importante na nova empreitada: Xadrez Verbal Cursos, deem uma olhada na página.
Pingback: Índice de textos do especial da 70ª Assembleia Geral da ONU | Xadrez Verbal
Pingback: Início do Debate da 70ª Assembleia Geral da ONU | Xadrez Verbal
Filipe, só pra avisar, tem um pequeno erro de digitação no texto do Opera mundi, diz 701 anos de ONU, seriam 70, correto?
Comentando aqui pois não tenho face (logo não existo para uma parcela da Internet).
Bruna, seriam sim 70 anos, ou os livros de História tão bem equivocados. Vou avisar o pessoal, obrigado e crie um Feice
Muito bom o post, não se fala quase nada disso nesse país… Vlw cara
Filipe, o erro avisado pela Bruna continua presente: “Elencou diversos sucessos dos 701 anos de ONU”