Gastos militares exorbitantes são a contradição do endividamento grego

Com despesas em defesa muito além da média na UE, Atenas compra armas da credora Alemanha incentivada por rivalidade com Turquia, hoje aliada na Otan

É impossível não notar algumas contradições ao analisar as origens da dívida grega e o tratamento do tema, tanto na imprensa quanto nas negociações entre o governo local e a troika de credores, formada por FMI (Fundo Monetário Internacional), Comissão Europeia e BCE (Banco Central Europeu). Dada a urgência por uma solução, é razoável e necessário questionar e analisar as eventuais formas de resolução da crise política, econômica e humanitária que acontece. É parcial, entretanto, questionar “se a dívida pode ser paga”, por exemplo, e não questionar a origem e os motivos dessa mesma dívida. Uma das maiores parcelas dos gastos públicos gregos não é com previdência ou benefícios sociais, mas sim com despesas militares, tema contraditório e de maior discórdia entre o gabinete Tsipras e os credores.

Dentre algumas discordâncias nas últimas conversas entre Grécia e credores, antes do referendo, estão, por exemplo, a reforma do imposto sobre o consumo — a última proposta grega oferecia uma adição de receitas de 0,93% do PIB (Produto Interno Bruto), perto do 1% exigido pelos credores. Em propostas anteriores, a oferta grega era de 0.74%. Outra medida de austeridade discutida é o aumento das contribuições aos seguros de doença dos aposentados. A Grécia deseja elevar em um ponto percentual, de 4% para 5%, enquanto a Troika deseja um aumento para 6%. Em nenhum ponto da discussão, entretanto, chega-se a uma diferença que represente o dobro do desejado, como é o caso da postura do governo Tsipras em relação aos gastos de defesa.

Os credores defendem que a Grécia deve cortar € 400 milhões de seu orçamento militar, enquanto o governo grego oferece um corte de apenas € 200 milhões. Um retrospecto de orçamentos militares desde 2002, ano que marca a adoção do euro como moeda circulante, é possível com dados do Instituto de Pesquisa de Paz Internacional de Estocolmo (SIPRI, da sigla em inglês). Nos últimos treze anos, a Grécia teve um gasto médio anual em defesa de € 5,5 bilhões. O menor valor foi justamente em 2014, com um orçamento militar de “apenas” € 4 bilhões. Nos anos de 2008 e 2009, seu orçamento anual foi superior aos € 7 bilhões.

Além de valores brutos que apontam para o alto volume das despesas gregas, os gastos relativos demonstram como esses orçamentos são desproporcionais, comparados tanto aos da austera Alemanha quanto aos da também periférica, do mar Mediterrâneo e em crise, Espanha. No mesmo período, a média da proporção de gastos militares gregos em relação ao seu PIB foi de 2,7%, com uma alta de 3,3% em 2009 e piso de 2,2% em 2014. Na Alemanha, a média foi de 1.35%. Os gastos espanhóis proporcionais ao PIB foram, na média, de 1.09%. Na conferência de líderes da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em setembro de 2014, com a escalada da crise do leste europeu, adotou-se o compromisso de aumentar os gastos de cada país para 2% de cada PIB; a Grécia está além desse patamar de forma ininterrupta desde o pós-guerra.

Outros dados sustentam a noção de uma “gastança” militar pelo Estado grego. Por exemplo, a participação dos gastos em defesa dentro de todo o orçamento nacional. Nos últimos treze anos, em média, 5,75% do orçamento anual do governo grego foi direcionado para as Forças Armadas. Na Alemanha, 2,9% do orçamento federal, em média, era para gastos em defesa, assim como 2,5% na média do governo espanhol. Qual seria, então, o motivo para orçamentos militares gregos tão volumosos? Essencialmente, a rivalidade geopolítica e corrida armamentista com seu rival histórico, a Turquia. Além de contradizer a ideia de que um país em crise não deveria gastar tanto, como na Espanha, isso contradiz as relações internacionais contemporâneas, já que Grécia e Turquia são aliadas dentro da Otan.

Outro contrassenso dos gastos militares gregos é devido ao destino desse dinheiro e as figuras políticas envolvidas na crise atual. Angela Merkel, a chanceler alemã, é figura extremamente impopular na Grécia. É vista como vilã, tanto por ser a credora que demanda austeridade quanto como intervencionista na política interna grega, por sua postura durante as últimas eleições e o recente plebiscito. Ao mesmo tempo, a Alemanha é o principal fornecedor das últimas compras de armamentos por parte da Grécia. No século XXI, o Exército grego adquiriu 170 novos tanques alemães, além de mais de 300 tanques das reservas usadas pela Alemanha, mais de 100 mil novos fuzis, além de operar milhares de veículos de procedência alemã.

A Marinha grega atualmente possui contratos de modernização de quatro fragatas de projeto alemão, construídas na década de 1990, além de ter modernizado sete submarinos no início dos anos 2000. Mais recentemente, alvo de muita polêmica, ocorreu a compra de quatro submarinos alemães do modelo 214. Inicialmente, a compra era de seis submarinos, reduzida para quatro e depois suspensa por falta de pagamento, segundo os alemães, e por problemas técnicos, segundo militares gregos. A operação foi marcada por casos de corrupção: neste ano, 32 gregos, civis e militares, foram indiciados por suposto envolvimento no episódio, além da prisão do ex-ministro Akis Tsochatzopoulos, em 2013, sentenciado a 20 anos por receber € 8 milhões em propinas da empresa alemã Ferrostaal.

Uma estimativa conservadora aponta para cerca de € 10 bilhões gastos pela Grécia em contratos de defesa com empresas alemãs; o volume total pode ser de até € 15 bilhões de euros. Pode-se caricaturar que a Grécia deve dinheiro para a Alemanha por ter pedido dinheiro emprestado para pagar a Alemanha por comprar armamento alemão. Não é uma descrição totalmente justa, mas resume a imagem passada, considerando as impressões sobre o papel de Merkel na atual crise. Além disso, a Grécia comprou armamentos, no período, em diversos outros mercados: veículos blindados russos, caças dos EUA, aviões militares brasileiros, modernização de navios nos Países Baixos, dentre outros exemplos.

O que é incompreensível e necessário que seja criticado é reduzir uma crise de tamanhas proporções aos gastos sociais. Acusação de “Estado inchado”, pedido por aumentos de impostos e a apropriação de fotos de aposentados em prantos como símbolo da crise, como se gastos previdenciários fossem o único problema. Sim, a Grécia tem o maior gasto previdenciário proporcional da zona do euro, mas proporção ainda mais harmônica do que em relação os gastos militares de seus vizinhos. Com o agravante de tal gasto militar ser motivado pela disputa histórica com o antigo dominador, hoje aliado dentro da Otan. Pior, um aspecto orçamentário dos mais defendidos por Tsipras nas negociações. Contradições internacionais e partidárias. Um verdadeiro e necessário “não” seria aceitar os cortes orçamentários na defesa, gasto que, atualmente, beneficia a indústria dos mesmos credores que o exigem.

Originalmente publicada em Opera Mundi.


assinaturaFilipe Figueiredo, 29 anos, é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.


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