Não é só pelos centavos: aumento da tarifa e a caixa preta do transporte

Hoje, dia Seis de janeiro de 2015, entra em vigor, em São Paulo, a nova tarifa das passagens no transporte público. Com o aumento, as passagens de ônibus, Metrô e trem, que custavam três Reais, passarão a ser R$3,50. Considerando os protestos de Junho de 2013, organizados inicialmente pelo Movimento Passe Livre, originados justamente em um aumento da tarifa, a medida já motiva polêmicas. Os críticos do aumento criticam e protesto já está marcado para sexta-feira, dia Nove. Os mais conservadores agem com ceticismo e sarcasmo, afirmando que vinte centavos causaram todos aqueles protestos, então, “querem ver agora”. Faz-se necessário, então, repetir que “não é só vinte” ou cinquenta centavos. O panorama do transporte público paulistano é mais complexo, e obscuro, que isso. Especialmente a “caixa preta” do dinheiro público e dos lucros do transporte, ainda fechada.
“Especialmente”, pois talvez seja o principal problema da atual situação em São Paulo, por afetar toda a estrutura, mas longe de ser a única adversidade. A qualidade do transporte público da região metropolitana está muito aquém do que uma cidade do tamanho de São Paulo demanda. Superlotação em linhas de ônibus, linhas que não atendem seus cronogramas, diminuição da oferta de linhas, uma rede de Metrô ínfima perto do tamanho da cidade são alguns dos outros problemas que afetam a metrópole. No caso específico da caixa-preta sobre o dinheiro público e os lucros, é verdade que o prefeito Fernando Haddad sinaliza em sua abertura, com o portal de transparência São Paulo em movimento, críticas ao lucro dos empresários do setor e com a contratação de uma auditoria “pente fino”; entretanto, a medida é de médio prazo e não impediu, ao contrário do que se especulava, o aumento da tarifa.
Temos então a primeira crítica: contratar uma auditoria para estabelecer o “preço correto” da tarifa do transporte público e não esperar seu resultado, aumentando o preço prematuramente, não é muito produtivo. Além disso, a caixa preta do transporte público também envolve o Metrô e os trens, que são da esfera estadual, ou seja, fora do escopo da auditoria. Não custa lembrar o “trensalão”, caso de corrupção que liga diretamente as empresas de Metrô e trem com políticos do governo estadual, ocupado pelo PSDB desde 1995. E a relação entre as empresas de transporte e os governos, seja a prefeitura ou o governo do estado, vai além. Embora empresas concessionárias de serviços públicos, como as operadoras das linhas de ônibus, não possam, por lei, fazer doações de campanha eleitoral, “dribles” na lei permitem essa relação no mínimo complicada. Afinal, como um ocupante de cargo público vai investigar ou auditar a empresa que financiou sua campanha?
Além da relação entre empresas e políticos, auditorias independentes se fazem necessárias pelos casos de maquiagem contábil e corrupção interna das empresas. “Falhas contábeis” já foram apontadas, em novembro de 2014, por uma auditoria da Ernst&Young contratada pela gestão Haddad. Mesmo que “falhas” possam ocorrer, casos em que a lisura da contabilidade pode ser questionada também aconteceram. Além de um depoimento de profissional do ramo bancário, o promotor do Ministério Público de São Paulo, Saad Mazloum, afirma explicitamente: “As empresas dizem que não têm recursos para melhorar a qualidade, mas, pelas provas que juntei, não há dúvidas de que houve desvio para os empresários”, incluindo movimentações em dinheiro.
No mesmo ano em que o promotor declarou tal frase sobre a corrupção empresarial, as empresas de ônibus de São Paulo anunciaram um aumento de 248% em seu lucro; fecharam 2012 com 152.5 milhões de reais positivos, contrastados com pouco menos de 44 milhões em 2011. A flutuação da margem de lucro de cada empresa é curiosa; a viação Novo Horizonte teve uma queda de 359% em seu balanço, enquanto a empresa Santa Brígida teve um aumento de 2.056%. O lucro das empresas de ônibus possibilita até mesmo empreendimentos mais custosos e ambiciosos, como o da aviação; a família Barata, dona de nada menos que vinte e oito companhias de ônibus pelo país, era a principal força por trás da companhia aérea WebJet, comprada pela Gol Linhas Aéreas por setenta milhões de reais, além da assunção de duzentos milhões de Reais em dívidas. Outro caso cristalino, que soma bilhões de dinheiro público com contabilidade suspeita, é o do Grupo Ruas, que lucra milhões, recebe bilhões em verbas públicas, mas teoricamente está quebrado.
Recapitulemos até agora. Temos uma rede de transporte público de má qualidade e insuficiente; aumento tarifário feito antes da auditoria que deveria regê-lo; a relação entre as empresas de ônibus e de trens em casos de corrupção e de financiamento partidário; e suspeitas de desvios contábeis nas empresas de transporte público, somadas ao aumento do lucro das empresas. E um dos fatores essenciais no lucro de tais empresas está justamente no subsídio fornecido com dinheiro público. Uma breve explanação do subsídio pode ser encontrada neste link. Resumindo, os órgãos públicos precisam “fechar a conta” do setor, tapando buracos como os números de viagens isentas pelo uso do Bilhete Único, o desequilíbrio entre as regiões da metrópole e problemas operacionais, como trânsito.
O subsídio, além de volumoso (na ordem de 1.7 bilhão de Reais em 2014), é, de acordo com a auditoria da Ernst&Young já citada, inflacionado: “A auditoria revela que, desde 2008, paga-se mais do que o previsto em contrato para as empresas e cooperativas por passageiro transportado.”, incluindo remuneração por viagens não realizadas. Temos uma relação contraditória: um negócio lucrativo que, em boa parte de seus custos, é subsidiado com dinheiro público. Existe uma privatização dos lucros e uma socialização dos prejuízos. Além disso, outra contradição se faz presente nos subsídios estatais ao transporte. O debate político sobre redução de custos e financiamento do transporte sempre esbarra em dois aspectos importantes em uma cidade como São Paulo; preço do combustível e trânsito, fazendo com que os ônibus fiquem mais tempo parados, logo, gerando custos.
Um dos motes da gestão Haddad é justamente o aumento dos corredores e faixas exclusivas para ônibus, o que é totalmente apoiado. Até setembro de 2014 foram 357 quilômetros de corredores e faixas exclusivas, com diminuição do tempo de viagem. Então, se os ônibus estão menos tempos parados no trânsito e fazendo viagens mais eficientes, por qual motivo os subsídios apenas aumentam? O que se torna um ciclo vicioso com a contradição anterior: o subsídio aumenta junto com o lucro das empresas operadoras. Ou seja, empresas de propriedade privada são lucrativas enquanto recebem repasses milionários de verbas públicas, independente da qualidade do serviço prestado.
Além disso, em um breve período, diversas cidades, as maiores do Brasil, aumentaram suas tarifas. Claro que fatores como inflação e custos afetam todos igualmente; entretanto, também deve ser notado que as grandes empresas de viação costumam ser partes de conglomerados ainda maiores, que operam em diversas cidades. Ou seja, os subsídios de diversas prefeituras vai parar na mão do mesmo seleto grupo de empresários, como as famílias já citadas aqui.
A falta de transparência é notável: empresas limitam informações a respeito de seus faturamentos, não informam os nomes de seus presidentes, diretores ou proprietários, normalmente sendo de capital fechado. Lembrando que são concessionárias de serviço de utilidade pública e muitas vezes, quando é conveniente, utilizam dessa retórica para obter benefícios. O bem estar financeiro da empresa é benéfico para a sociedade, já que o serviço oferecido é essencial. Uma breve busca por sites que representam a categoria demonstra o discurso utilizado em situações de conveniência.
Temos então a última problematização dessa caixa preta. No caso de São Paulo, como dito, o principal articulador dos protestos e críticas aos aumentos tarifários é o Movimento Passe Livre, MPL. A meta do movimento, como explícito em seu nome, é a tarifa zero, o transporte público gratuito. Independente do que se pense sobre essa proposta ou sobre o movimento em si, o fato é esse, o MPL é o principal articulador em relação ao tema. Haddad e Alckmin fizeram uma jogada política, ao colocar na mesa o passe livre estudantil, para estudantes de baixa renda. Alguns setores sociais até “comemoraram” a conquista.
Por qual motivo isso foi uma jogada de mestre? Pois esvazia, na imagem pública, a demanda do MPL, ou ao menos o protesto contra o aumento da tarifa. Se os estudantes deveriam ser beneficiados, então, qual o motivo do protesto? O prefeito, como mostrado no link anterior, chega a dizer que apenas 8% dos usuários serão afetados diretamente pelo aumento. Em ambos os casos, na gratuidade estudantil e na porcentagem dos afetados pelo aumento, trata-se de bravata. Como o governo do estado e o Metrô ainda não anunciaram seus parâmetros para o passe livre estudantil, vamos nos ater aos ônibus.
Primeiro, o custo de tais gratuidades (assim como as já existentes, como idosos) será simplesmente embutido nos subsídios estatais; os mesmos subsídios que ainda não foram totalmente auditados e criticados nos parágrafos anteriores. Segundo, embora sejam mais de meio milhão de estudantes que serão beneficiados, na verdade eles terão cotas de passagens mensais, cobrindo gastos de ir e vir de casa para o estabelecimento de ensino. Isso não cobre deslocamentos feitos em horários outros durante o dia, em finais de semana ou durante as férias. Essas restrições afetam todos os benefícios estudantis, como a meia passagem.
Além disso, o aumento da tarifa não afetará os usuários do Bilhete Único mensal; entretanto, esses respondem por menos de 2% das viagens, segundo a SPTrans. Haddad afirma que apenas 8% dos usuários serão afetados pelo aumento por essa ser a porcentagem de usuários que paga sua tarifa em dinheiro; o número real é a soma de usuários que pagam em dinheiro, usam o Bilhete Único comum e suas integrações. Mais de 50% dos usuários totais serão afetados pelo aumento tarifário, ao menos no curto prazo. E deve ser repetido: essas gratuidades estão diretamente ligadas aos subsídios, ingrediente importantíssimo da caixa preta do transporte público.
Não se trata de vinte ou cinquenta centavos. Trata-se de onde cada moeda dessas, multiplicada pelos milhões de viagens mensais, vai parar. Motivos, origens, destinos desse volume de dinheiro, que paga por um serviço que, no mínimo, é aquém do que deveria ser. “Falhas contábeis” não devem ser aceitas, pois o dinheiro do contribuinte e do usuário do transporte público vai parar em bolsos desconhecidos. Por isso, pela existência dessa caixa preta, também não deve ser aceito um aumento tarifário injustificado; sim, injustificado, pois, independente da inflação ou da revogação do aumento anterior, a auditoria não foi completa, as contas não estão abertas. Costuma-se dizer que “a conta não fecha” no transporte público de São Paulo. Isso seria verdade se, ao menos, soubéssemos todos os fatores dessa conta.
O texto de hoje possui muitos links de referência; embora possam prejudicar um pouco a fluidez da leitura, são essenciais para demonstrar dados e complementar os argumentos aqui expostos. Recomendo a visita de todos, pois contribuem bastante para a compreensão da ideia exposta no texto.
Filipe Figueiredo, 28 anos, é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.
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