A Rússia ainda obedece aos caprichos de Stalin?

Caros leitores, de acordo com um texto de Catorze de Julho de 2014, o último prisioneiro de guerra alemão teria sido libertado pela Rússia. Reinhard Kunze, de oitenta e quatro anos, teria sido capturado na Batalha de Berlim, em Janeiro de 1945, quanto tinha catorze anos de idade. Passaria os sessenta e nove anos seguintes em campos de trabalho forçado soviéticos e russos. Sergey Lavrov, Ministro de Relações Exteriores Russo, teria anunciado um “ato de boa vontade” e “generosidade” ao libertar o prisioneiro. Kunze teria ficado tanto tempo preso por um motivo, a determinação pessoal de Josef Stalin. Teria sido ele o executor de Yakov Dzhugashvili, em Abril de 1943. Caso o leitor não reconheça o nome, era o filho de Stalin.

A suposta notícia circula pela internet. Muitas vezes acompanhados de comentários raivosos, seja dizendo que “não se pode confiar nos açougueiros russos” ou de que o referido senhor “era um criminoso nazista e mereceu”. Típicas respostas emotivas, motivadas pelos mais diversos preconceitos ou radicalismos. Aversão à Rússia, ou ao comunismo da Guerra Fria representado pela União Soviética, derivados da doutrinação ideológica típica do período. Ou uma crença de que todo e qualquer alemão que tenha vivido entre os anos de 1939 e 1945 seja um “nazista” que merece os piores castigos, o que muitas vezes reflete a própria falta de compreensão sobre o tema.

A questão é que uma notícia dessas é compartilhada de maneira rápida, em diversos idiomas (o leitor pode conferir numa rápida busca), acompanhada dos mesmos tipos de comentários emocionais. E ninguém, por exemplo, checa os fatos que compõe a história narrada. Não se sabem, de forma definitiva, as circunstâncias da morte de Yakov. A hipótese de ter sido executado por um guarda alemão de campo de concentração surgiu apenas em 2012. O que se sabia, ao fim da guerra, era que ele morreu em 1943. Ou seja, quando o suposto prisioneiro alemão Kunze tinha doze anos de idade. Embora a maré da guerra já tivesse se virado contra a Alemanha em 1943, o regime do III Reich ainda não armava garotos, muito menos em campos de concentração.

Além disso, a relação entre Stalin e seu filho mais velho não era das mais próximas; o ditador inclusive se recusou a fazer uma troca de prisioneiros envolvendo seu filho, no início de 1943, afirmando que os alemães possuíam como prisioneiros “milhões de meus filhos, ou vocês libertam todos, ou ele compartilhará o mesmo destino”. Existe outro elemento, entretanto. Mesmo que um eventual leitor da notícia não tenha como verificar a congruência histórica dos episódios, o senso crítico aguça algumas suspeitas que podem facilmente serem checadas via uma busca.

Por exemplo, as declarações de Sergey Lavrov, figura proeminente, somente se repetem no mesmo texto. A foto de um senhor de barba, com expressão fatigada e de olhos azuis, que muitas vezes acompanha a notícia, está presente em quinhentos e três resultados. A exata mesma foto. Incluindo um link do Pinterest de 2008, tutoriais de Photoshop e coletâneas de fotos variadas. Ou seja, não se trata da foto do “olhar da liberdade”, nas palavras de um comentário, no rosto de um prisioneiro de guerra por quase sete décadas. É apenas uma foto qualquer, colocada para ilustrar a notícia.

Notícia esta que, novamente em uma rápida busca, remete ao site original que a publicou e pode ser acessada aqui neste link. O site World News Daily Report é um site de notícias falsas e fictícias. Como é a moda nesse tipo de site, avisa isso de forma discreta, em um link separado, que não acompanha o texto da “notícia”; ou seja, facilita a má interpretação da notícia falsa. O texto fictício choca ou causa espanto no leitor, que tem uma reação emocional. A resposta emotiva nubla seu senso crítico e faz a pessoa divulgar ou comentar o texto, ou ambos. Daí uma ideia falsa, sem sustentação, se espalha e passa a influenciar, de forma bem real, a mente das pessoas.

É espantoso como a internet permite a divulgação de conhecimento e a troca de ideias, ao mesmo tempo em que possibilita o rápido alastramento de ilusões e mentiras. Sejam as intencionalmente difundidas, as categorizadas como humor ou apenas dar novas proporções ao bom e velho boato. Além disso, cabe mencionar a exploração desse tipo de procedimento; um sensacionalismo que motiva a omissão de deixar explícito o que é notícia e o que não é. Nada disso, entretanto, funciona enquanto o leitor manter o senso crítico e o ceticismo. Considerando que a sociedade brasileira passa pelo processo político que antecede uma eleição, período carregado dos exemplos citados aqui, tal comportamento do leitor é uma necessidade de primeira grandeza.

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A divulgação e repercussão real de textos falsos já foi discutida nesse espaço duas vezes: Os textos Marina Silva fez gestuais satânicos durante o último programa Roda Viva? e A repercussão de textos falsos hoje e ontem: a conspiração judaica para dominação mundial. Ironicamente, são alguns dos mais acessados da curta história do blog.

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