A polêmica da médica cubana e a devolução autoritária para o governo de Fidel: os boxeadores de 2007
Caros leitores,
Nos últimos dias, uma velha polêmica reacendeu. Desde a notícia de que a médica cubana Ramona Rodriguez abandonou o programa Mais Médicos, comenta-se da possibilidade de ela ser “devolvida” para o governo cubano, novamente sob a justificativa de uma proximidade ideológica entre o governo federal brasileiro e o governo cubano. Para “embasar” essa suspeita, costuma-se citar o caso a suposta devolução dos boxeadores cubanos Guillermo Rigoundeaux e Erislandy Lara, que fugiram da concentração de seu país durante os Jogos Pan-americanos de 2007. Alguns dias atrás, a jornalista Eliane Cantanhêde, em sua coluna do jornal Folha de S. Paulo, repetiu o mantra de que os boxeadores foram “mandados de volta”. Essa acusação, de que o retorno dos boxeadores a Cuba foi um ato autoritário e unilateral do governo Lula, procede?
Uma breve recapitulação dos fatos. Rigoundeaux e Lara fugiram da concentração cubana durante os Jogos Pan-americanos de 2007, no Rio de Janeiro, no dia 27 de Julho de 2007, um Domingo. Alguns dias depois, em Dois de Agosto, eles foram encontrados na região de Araruama, estado do Rio de Janeiro. Ambos foram detidos pela Polícia Federal por serem estrangeiros sem passaporte, procedimento padrão; seus passaportes estavam em posse dos chefes da delegação esportiva cubana (um ato arbitrário, sem dúvida, mas vindo de uma organização esportiva de um país ditatorial, esperava-se outra coisa?). A busca pelos dois boxeadores iniciou-se depois de pedido formal das autoridades cubanas, atendido pelo Ministério da Justiça brasileiro, em postura usual de cooperação. Até esse ponto, não existe base para polêmica.
O autoritarismo teria começado a partir desse ponto. Após a detenção dos cubanos pela Polícia Federal, teria sido negado qualquer tipo de cooperação com os atletas, e eles foram imediatamente despachados para Cuba, para aplacar a ira de Fidel Castro; ainda por cima, teriam sido enviados em um avião venezuelano, colocado à disposição do governo cubano por Hugo Chávez; ou seja, uma articulação entre três governos do Foro de São Paulo para a execução de um ato autoritário de repressão aos dois boxeadores, prato cheio para polêmica. De fato, os atletas foram levados para Cuba no sábado, dia 4 de Agosto, em um avião fretado pelo governo cubano que partiu do Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio de Janeiro.
Vamos desconstruir tudo isso. Primeiro, pode-se cobrar a exatidão de que os atletas não foram “deportados” do Brasil, ao contrário do que muitas matérias afirmam, já que eles entraram no país em situação regular e não foram presos; porém, como foram detidos sem a documentação necessária, o termo foi usado em um “erro técnico” da Polícia Federal. Os atletas cubanos poderiam ter ficado no Brasil com uma simples medida: pedirem refúgio no país (refúgio e asilo político não são a mesma coisa!). Como fazer isso? Com um pedido partindo do próprio requerente, alegando que teme perseguição por determinado motivo (político, religioso, étnico, etc.) em seu país. O pedido é processado pelo Ministério da Justiça e outorgado, ou não, pelo Conare (Comitê Nacional para Refugiados).
Eles tiveram essa possibilidade? Sim, tiveram, de acordo com o procurador Leonardo Luiz Figueiredo, que ofereceu assistência jurídica e verificou pessoalmente as condições de tratamento aos atletas cubanos. Ainda de acordo com o procurador, os boxeadores que pediram, voluntariamente, o retorno ao seu país de origem (outro motivo que anula o termo “deportação”). De acordo com nota oficial da OAB, “O procurador Leonardo Luiz nos disse também que já estava com o habeas corpus pronto, já que ele havia esclarecido aos cubanos que se eles quisessem pedir refúgio no Brasil eles tinham esse direito e, caso o governo brasileiro lhes negasse tal direito, o procurador da República entraria com a medida judicial para garantir o direito dos atletas (…). Eles repetiram que queriam voltar para seu país”.
Esclarecido que não houve autoritarismo por parte do governo brasileiro, então, por qual motivo os boxeadores não teriam feito esse pedido, sabendo que Fidel estava desgostoso com a situação, que poderiam sofrer perseguições de um governo ditatorial? Pois refugiados não podem sair do território nacional sem autorização específica, de acordo com a lei brasileira que regulamenta o Estatuto dos Refugiados da ONU de 1951. Essa medida se dá para proteção; já que o Estado brasileiro se dispõe a refugiar um indivíduo, deve também zelar pelo seu trânsito e garantir que ele esteja dentro de sua jurisdição e proteção. E no que isso influencia o caso dos boxeadores? Caso pedissem refúgio no Brasil, não conseguiriam sair do país (ao menos, não teriam trânsito livre), consequentemente não poderiam cumprir seus contratos milionários com a empresa alemã de promoção de lutas Arena.
Chegamos então no ponto essencial de toda a história: os atletas cubanos não pediram refúgio no Brasil, pois não era de seu interesse financeiro! Era mais vantajoso retonar para Cuba e tentar uma nova fuga, para então viabilizar sua carreira como boxeador profissional. Por favor, note, caro leitor, que não vejo nenhum problema em um atleta que ganhou duas medalhas de ouro olímpicas querer se profissionalizar e fazer uma carreira com sua capacidade esportiva e atlética; muito menos criticaria um cidadão querer fugir de um governo que veja como ditatorial ou repressor. Trata-se apenas de imputar as responsabilidades corretas e proporcionais de acordo com os acontecimentos e com a lei. Não houve autoritarismo do governo federal, ou uma cooperação nefasta com o governo cubano, tampouco conspiração comunista internacional.
Posteriormente, Lara e Rigondeaux fizeram exatamente isso: fugiram de Cuba e assinaram com a mesma empresa alemã Arena. Rigondeaux tem treze lutas como profissional, treze vitórias, sendo oito por nocaute, e dois cinturões de campeão mundial. O cartel profissional de Lara é mais modesto, com 22 lutas, 19 vitórias, doze por nocaute, uma derrota e dois empates; tem um cinturão provisório, por aposentadoria do detentor anterior. Como comparação, nos mesmos jogos Pan-americanos, o jogador de handebol Rafael da Costa Capote e o treinador de ginástica artística Lázaro Lamelas Ramírez também fugiram da concentração cubana. Ambos pediram refúgio no Brasil e permaneceram no país; Capote jogava por São Caetano (notem a resposta dele sobre Fidel, na entrevista linkada) e Lamelas treinava uma equipe no interior de São Paulo, em 2008 e 2009 respectivamente (ou seja, mais de ano após os eventos do Pan).
Não há, pelo menos até o momento, um movimento organizado de busca por cubanos descontentes com seu país ou seu governo, aqui no Brasil, para que sejam enviados de volta à ilha contra sua vontade. Não foi o caso dos boxeadores Rigondeaux e Lara; eles não foram vítimas de uma perseguição autoritária, mas sim, parte de movimentos cuidadosamente arquitetados para suas carreiras e para proveito de uma empresa de promoção de lutas. Casos outros de cubanos que quiseram ficar no Brasil há aos montes, inclusive no mesmo evento esportivo, o Pan-americano de 2007. Pelo menos nesse aspecto, não cabe comparação com a médica cubana do Mais Médicos, tampouco cabe crítica ao procedimento do governo brasileiro na época. A polêmica sobre esse assunto é vazia e reproduzida ou por desinformação ou por más intenções, especialmente em alguns veículos de mídia. No caso da desinformação, podemos resolver o problema.
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Muito esclarecedor, e muito bem destacada a entrevista do Rafael Capote. Uma dúvida: nesse caso do Capote, que conseguiu o asilo político, ele dizia na época que gostaria de ir para a Europa; seria possível? E, se sim, como isso se daria, considerando sua situação política? Ele iria como “cubano” ou “brasileiro”? Abraço.
Felipe,
E você acha que para cumprirem seus contratos milionários seria mais fácil para os cubanos fugirem do Brasil caminhando pela ponte da amizade com um RG comprado na Praça da Sé ou constriírem clandestinamente uma jangada e se atirarem em um oceano cheio de furacões e tubarões rezando para o vendo soprar para o lado da Flórida? Você não cogita que eles foram colocados em contato com autoridades cubanas que disseram por telefone que as “famílias deles sofreriam muito” e talvez não se tratasse apenas de saudade…. como também foi noticiado?
Se eles tivessem recebido uma ligação do tipo “famílias deles sofreriam muito” na época que fugiram do Pan, não poderiam ter recebido hoje em dia também, após terem fugido de novo?
Acredito que, isso tipo de ameaça pode ocorrer sim, mas não foi o que houve. Do contrário, eles não teriam fugido tempos depois
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ME ENGANA QUE EU GOSTO…… HAHAHAHAH