Egito: velhos problemas, novas consequências
Estava rabiscando algumas linhas sobre os possíveis desdobramentos do escândalo envolvendo Siemens, Alstom e PSDB. Decidi fazer uma pausa para ler parte das notícias internacionais, acabei em uma galeria de fotos dos últimos dias no Egito. Foi impossível manter o foco na descaradamente nomeada Orange Internacional depois de ver a barbárie esfregada na sua cara.
Edward Said escreveu que o Ocidente nunca se interessou em entender o Oriente, apenas “criou” um conceito próprio de Oriente. Seu conceito de 1978 nunca esteve tão atual quanto na sociedade pós-11 de Setembro. O Oriente Médio é visto como dividido entre dois blocos: os liberais pró-Ocidente, uma espécie de “minoria esclarecida”, e os radicais islâmicos, uma maioria supostamente ignorante e radical que deve ser, no mínimo, controlada. Exemplo maior disso é o reino da Arábia Saudita, um país teocrático e absolutista, mas que controla com mão de ferro sua sociedade, evita extremismos e comercializa petróleo; logo, um Estado satisfatório ao Ocidente.
Obviamente, essa visão é rasteira. Ela ignora toda a diversidade do Oriente Médio, mas isso teria que ser tema de uma série de posts para eu poder tratar do assunto de forma minimamente apropriada. Vou me ater ao Egito. O país tornou-se independente de facto em 1952, após um golpe militar que destituiu a monarquia anglófila que governava o país até então. Nos sessenta anos supostamente republicanos, entre 1952 e 2012, o Egito teve apenas cinco Chefes de Estado, sendo um deles, Naguib, por pouco mais de um ano após o golpe, e outro, Sufi Abu Taleb, por meros oito dias, como transição após o assassinato de El Sadat. Somados, Gamal Abdel Nasser, El Sadat e Mubarak governaram o Egito por cinquenta e cinco anos.
Existe outro aspecto que une os três: eram militares. Todas as transições de poder no Egito, desde 1952, foram conduzidas pelas forças armadas, especialmente o Exército (Mubarak era da Força Aérea Egípcia). Até a Constituição de 2012, o Egito era unipartidário, e as sucessões presidenciais aprovadas via referendos de legitimidade duvidosa. Essa é a primeira faceta particular ao Egito, que muitas vezes foge das análises: existe uma mentalidade unicamente de Estado, não uma mentalidade de pluralidade política, muito menos concepções “tribais” ou de incorporação da religião na política. Muito disso vêm das concepções pan-árabes nacionalistas de Nasser, que estabelece uma camada social como a “guardiã” do Estado egípcio, independente de aspectos políticos localizados; no caso, o Exército considera-se responsável pelo Egito.
O país é berço da Irmandade Muçulmana, que elegeu o primeiro presidente democraticamente eleito do país, Mohamed Morsi, deposto em Julho passado. Fundada em 1928, foi declarada ilegal por décadas após ter tentado assassinar Nasser. A entidade é pioneira do pan-arabismo, mas em uma concepção diferente. Enquanto o pan-arabismo de Nasser e seus sucessores é nacionalista, voltado para elementos de Estado, o pan-arabismo da Irmandade Muçulmana é centrado em elementos culturais e étnicos, como o idioma árabe e a prática do Islã, embora mantenha a secularidade do Estado. Esse é outro conceito que, na maioria das análises na mídia nacional, é totalmente ignorado. Retomando o dizer de Edward Said, a Irmandade Muçulmana, apenas pelo seu nome, já é automaticamente tomada como uma organização terrorista ou radical (o que ela é em alguns locais, como Gaza). No caso egípcio, o maior expoente do islamismo radical é o partido Al-Nour, que defende, por exemplo, a implantação da Sharia como lei e um recrudescimento das relações com Israel (que foram retomadas por El Sadat, vencedor do Nobel da Paz, assassinado por fundamentalistas).
E os liberais? Nas eleições de 2011, conquistaram cerca de 9% do Parlamento, contra 28% dos islâmicos radicais do bloco liderado pelo Al-Nour e 37.5% do bloco partidário da Irmandade Muçulmana. Partidos ligados ao pan-arabismo de Nasser conquistaram cerca de 15% do Parlamento. Ou seja, os liberais são apenas o quarto grupo em representatividade, ao contrário da perspectiva estereotipada no Ocidente. A situação atual no Egito tem muito pouco a ver com a chamada “Primavera Árabe”; é reflexo, talvez o ápice, de uma disputa interna de poder que remonta à década de 1950. Militares nacionalistas, que são tolerados pela opinião internacional, pois são considerados a única forma de deter o radicalismo islâmico, contra um grupo que objetiva construir uma república islâmica, com um terceiro grupo que cresce dia após dia, o do radicalismo islâmico.
O histórico de assassinatos, golpes e contragolpes em um país cuja primeira experiência de democracia foi ano passado não facilita o entendimento e o compromisso. São duas concepções opostas do que é o Estado egípcio, e a quem ele pertence. Mas, ao contrário da década de 1950, existem muitas outras consequências possíveis no cenário atual. A tensão em toda a região, como na vizinha Líbia e na Síria; o temor internacional do fortalecimento do islamismo radical; o estado de constante alerta de Israel, que observa situações tensas em duas de suas fronteiras e, especialmente, a rápida repercussão em larga escala da violência estatal, que deixou centenas de mortos em alguns dias. A situação no Egito é delicada, exige mais que notas à imprensa e faz parte da consolidação democrática em um país ainda na infância. Mas o primeiro passo para analisar esse cenário é deixar de lado conceitos estereotipados e entender as características singulares da sociedade local.
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A obra citada de Edward Said é Orientalismo, aqui em edição de bolso.
Caso queira ver as fotos da cobertura dos eventos no Cairo citadas na introdução ao texto, o link está aqui. Aviso que algumas imagens são fortes (as mais fortes requerem autorização para visualizar)
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Muito bom o texto, ajuda a desmistificar um pouco o oba-oba com a Primavera Árabe.
Obrigado pelo elogio, Luis. Um abraço.
Muito boa a análise como um todo. Legal seria citar que Egito e Síria foram, recentemente, um estado só, a RAU.
Ótimo complemento, Pedro. Um abraço!
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