Antiamericanismo? Explicando a aproximação nuclear entre Brasil e Irã

Na última semana, o principal assunto da política internacional certamente é o anúncio de parâmetros comuns para um futuro acordo nuclear entre o Irã e o grupo 5+1, composto pelas potências permanentes do Conselho de Segurança da ONU e pela Alemanha. Os termos acordados em Lausanne e sua comparação com o acordo nuclear acordado entre Brasil, Turquia e Irã em 2010 já foram tratados aqui. Deve-se aproveitar a ocasião para um lembrete e um esclarecimento, tanto sobre o programa nuclear brasileiro quanto sobre a política externa brasileira. O motivo pelo qual o Brasil se aproximou do Irã no tema nuclear.

O discurso de muitos veículos de mídia e dos setores conservadores brasileiros era de que a política externa conduzida por Celso Amorim durante os governos Lula era digna de muitos adjetivos pejorativos. A relação com o Irã seria fruto de uma ligação entre o partido do governo e terroristas, ou demonstraria o apoio de Lula ao terrorismo, ou ainda uma política externa “anti-EUA”. Os lugares comuns ditos por alguns participantes e articulistas do debate político brasileiro. Esse tema é por demais complexo para esse breve texto e é merecedor de toda a atenção e exclusividade no futuro; entretanto, um aspecto bem pragmático, mas frequentemente esquecido, explica a aproximação nuclear entre Brasil e Irã.

Brasil e Irã estão em posições similares no que concerne a comunidade internacional nuclear. Tanto Brasil quanto Irã são signatários e ratificaram o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP); de fato, o Brasil apenas aderiu ao TNP em 1998, sendo que o Irã é um dos signatários originais, em 1968. Ambos fazem parte da Agência Internacional de Energia Atômica e ambos são listados no Anexo II do Tratado de Interdição Completa de Ensaios Nucleares (CTBT, na sigla em inglês); o Anexo II compreende países essenciais para a entrada em vigor do tratado, que ainda não vigora. Aqui entra uma pequena diferença, o Brasil assinou e ratificou, o Irã é apenas signatário. E, principalmente, ambos os países produzem e enriquecem combustível nuclear e possuem usinas de energia nuclear.

Mais ainda, o Brasil reconhecidamente teve um programa nuclear militar por duas décadas, durante a ditadura militar. Extrapolando, o fato do Brasil também possuir conhecimento no ciclo espacial e capacidade de lançar foguetes poderia fazer, no futuro, do Brasil uma potencial ameaça nuclear; a conexão está no vetor, um foguete que ascende ao espaço para posicionar um satélite também pode servir como um míssil balístico intercontinental. O percurso, entretanto, é complexo para esse caso, dada as dificuldades de miniaturizar um artefato nuclear. Hoje isso pode soar como paranoia, afinal, o Brasil é uma democracia, a proibição ao armamento nuclear está na Constituição e o país é membro ativo da comunidade internacional nuclear, inclusive o restrito Grupo de Fornecedores Nucleares; países que articulam o controle nuclear pela cooperação pacífica e fornecimento de material.

O Brasil pode não ser considerado uma ameaça nuclear para a paz mundial, mas poderia estar sujeito ao mesmo tipo de pressão que o Irã. O fato de o país persa ser uma ditadura teocrática na região mais instável do globo obviamente colabora para suspeitas e cobranças, assim como o peso de acusações de violações do TNP, mas, no Direito Internacional, nos papéis assinados, as posições são semelhantes. Finalmente, existe um tema muito caro inclusive aos setores conservadores brasileiros, a soberania nacional. O Brasil é dono da sexta maior reserva de urânio do planeta e possui domínio tecnológico sobre o processo de enriquecimento; especula-se que as centrífugas brasileiras estariam entre as mais avançadas do mundo.

As principais instalações nucleares brasileiras são o Centro Experimental de Aramar, da Marinha, em Iperó, o Centro Tecnológico do Exército, em Guaratiba, o Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo, no campus da USP na capital e a Fábrica de Combustíveis Nucleares, em Resende, gerenciada pelas Indústrias Nucleares do Brasil. O temor de roubo de tecnologia ou espionagem industrial sobre as centrífugas brasileiras na FCN levou, em 2004, ao mesmo tipo de acusação e pressão na imprensa internacional sobre o programa nuclear brasileiro; após o Brasil limitar as inspeções pela AIEA, uma notícia, do Washington Post, por exemplo, dizia “Brasil oculta instalações de urânio”. Sensacionalista, do tipo que pode gerar sentimentos de cobrança.

Indo além, parte do programa nuclear brasileiro ainda possui destino militar, o reator que alimentará o futuro submarino nuclear da Marinha do Brasil; a tecnologia é desenvolvida no citado CTMSP. Chega-se ao ponto de especular-se que o Brasil seria uma potência militar dormente, um país que possui os meios de produção de armamento nuclear, caso deseje. O Brasil, desde o governo Sarney, domina o enriquecimento 20% de urânio. Em conclusão, o Brasil é um país que está, na letra da lei, em patamar muito semelhante ao do Irã. Possui usinas nucleares de energia em Angra dos Reis, possui reservas minerais de urânio, programa espacial, o domínio tecnológico do tratamento de urânio, um histórico de programa nuclear militar, cientistas reconhecidos na área e uma finalidade militar atual para parte do seu programa nuclear.

nukebrasil

O programa nuclear brasileiro em seis fotos. Fileira superior, da esquerda para a direita. Álvaro Alberto da Mota e Silva, Almirante e “pai” do programa nuclear brasileiro, envolvido diretamente na busca secreta por tecnologia e material na Alemanha na década de 1950, as “chocolateiras”; João Augusto de Araújo Castro, chanceler do governo João Goulart, em pronunciamento na ONU, defensor da ideia de que o TNP causaria o “congelamento do poder mundial”; a assinatura do acordo nuclear entre Brasil e Alemanha em 1975. Fileira inferior. A Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto, em que estão as usinas nucleares Angra, que iniciou operação em 1985; o então presidente Fernando Collor, em 1991, joga uma pá de cal simbólica em um dos poços para testes de bombas nucleares no Campo de Provas Brigadeiro Velloso, na Serra do Cachimbo, sinalizando o fim do programa nuclear militar; modelo do projeto de submarino nuclear brasileiro, com destaque para o reator embarcado.

Como essa recapitulação se relaciona com a soberania brasileira ou com a aproximação com o Irã? Chancelar as pressões, ou até um eventual cessar, ao programa nuclear iraniano poderia criar um precedente perigoso, legitimando essas mesmas pressões sobre a pesquisa nuclear no Brasil. Se o Brasil procura preservar um segredo industrial como o das centrífugas ao restringir o acompanhamento das inspeções da AIEA, é razoável apoiar quem tem argumento similar e também é signatário do TNP. Se o Brasil busca acordos para manter suas usinas nucleares, fruto de intercâmbio tecnológico com a Alemanha que foi suspenso por anos, deve igualmente buscar acordos com o programa nuclear iraniano.

Postura semelhante, em outro tema, possui a Espanha em relação ao Kosovo. A Espanha é um dos poucos países da Europa ocidental que apoia a Sérvia, não reconhece a separação unilateral do Kosovo. Por solidariedade aos sérvios ou por desconsiderar o pleito kosovar? Longe disso, apenas para também não criar um precedente e se ver deslegitimada em não aceitar a separação unilateral de suas regiões com identidades próprias, como o País Basco ou a Catalunha. A política externa “ativa e altiva” de Celso Amorim, ao se aproximar do Irã no tema nuclear, não foi “antiamericana”, “bolivariana” ou visava “apoiar o terrorismo”. Foi um ato baseado apenas na criação de um precedente que preservasse a soberania nacional, tanto brasileira quanto iraniana, em um campo essencial do conhecimento, a pesquisa nuclear.


assinaturaFilipe Figueiredo, 29 anos, é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.


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