O liberalismo de Marcel Van Hattem não passa pelos portões dos presídios

– por Daniel Costa

Capa do post: O superlotado Presídio Central de Porto Alegre

Chamou hoje minha atenção Projeto de Lei apresentado pelo deputado estadual Marcel Van Hattem (PP-RS), apontado por alguns mais crédulos como um novo (bom) nome do incipiente liberalismo brasileiro pós-ditadura. Comentarei brevemente o projeto, mas antes é bom que o leiamos na íntegra, para não haver confusão.

“Art. 1° Determina que todo condenado recluso em regime fechado ou semiaberto deverá indenizar ao Estado do Rio Grande do Sul os valores correspondentes aos custos de sua manutenção em reclusão.
Parágrafo único. O recluso que não tiver condições financeiras para arcar com a indenização deverá ter desconto proporcional da remuneração de trabalho exercido.

Art. 2° Os valores correspondentes à indenização serão destinados ao FUNDO PENITENCIÁRIO do Estado do Rio Grande do Sul”

Pois é. Não se trata de um projeto muito grande, não é mesmo?

A primeira coisa a chamar minha atenção foi o fato de o deputado Marcel, pago com o dinheiro de impostos (sempre bom lembrar), desconhece a Lei de Execuções Penais, que já prevê uma série de medidas em relação ao trabalho realizado por aqueles que cumprem pena, bem como à remuneração por eles auferida. A bem da verdade, Van Hattem também não é muito familiar com a parte da Constituição Federal que trata da distribuição de competências legislativas (Art. 22, I), uma vez que não cabe a deputados estaduais como ele legislarem sobre execução penal, sendo esta matéria de competência privativa da União. Alguém mais cínico diria se tratar de uma forma populista de angariar apoio e admiradores, quem sabe visando disputar a prefeitura de Porto Alegre, para onde já transferiu seu título. Mas não sejamos cínicos, tudo provavelmente foi apenas ingenuidade ou coincidência. As coincidências não param por aí: a mesma Constituição que diz que a Marcel não compete legislar a respeito da execução das penas também tem como cláusula pétrea a vedação do trabalho forçado (CF, Art. 5º, XLVII, c), o que torna a constitucionalidade material de seu PL no mínimo duvidosa.

Ingenuidade, ignorância ou mais uma coincidência o fato de o deputado também desconhecer as condições às quais os presos brasileiros são submetidos e o funcionamento do regime de trabalho prisional ao qual estão sujeitos. Na prática, o que existe no Brasil são presos ociosos contra a sua vontade, que desejam trabalhar mas não podem, devido à superlotação do sistema carcerário, à falta de vagas de trabalho, entre outros motivos. Se adicionarmos à lista os egressos do sistema carcerário, a situação fica ainda pior: não são raros os ex-presidiários que não conseguem empregos formais devido a perversidades da ação do Estado. Dentre elas figuram situações que beiram o kafkiano como o condicionamento da retirada de carteira de trabalho ao pagamento da multa a que foram condenados ou mesmo, como lembrou um membro da Pastoral Carcerária do Rio Grande do Sul no próprio perfil do Facebook de Van Hattem, uma insana norma que obriga presos a trabalharem 8 horas por dia e receberem no mínimo um salário mínimo, o que obviamente acaba por impossibilitar que os presos trabalhem. Ou seja, é comum ver presidiários e egressos do sistema prisional tentando recomeçar suas vidas sendo impedidos justamente por medidas que, ao que tudo indica, agradam o deputado. Boa parte destas pessoas acaba reincidindo justamente por causa de soluções “simples”, como a do projeto de lei de Marcel.

Ora, mas o deputado não se diz liberal? Não diz que é favorável à redução do papel desempenhado pelo Estado em nossas vidas? Além de ser no mínimo esquisito alguém aparentemente tão avesso ao populismo dando soluções tão simples (simplórias) para problemas complexos — a famosa canetada — , causa ainda mais estranheza verificar a Lei de Execução Penal com calma e perceber que ela estabelece que os frutos dos trabalhos do preso devem ser usados primeiramente para pagar a indenização devida ás vítimas à qual o apenado tenha sido condenado. Ou seja, no fim das contas, a lei existente, embora nem seja sempre cumprida, prioriza a vítima do crime, não o Estado. O projeto de Van Hattem, por outro lado, sequer menciona a vítima do crime, dando atenção exclusiva aos gastos do Estado com o preso. No mínimo esquisito que sequer tenha passado pela cabeça de Marcel, político que ao menos em teoria acredita na defesa da sociedade e dos indivíduos que a compõem contra os desmandos do Estado, que a vítima também merece atenção da lei e da Justiça.

Aliás, além de visitar uma prisão ou mesmo conversar com as vítimas de crimes, com quem trabalha com isso, com quem estuda o tema ou mesmo com quem já esteve preso, sugiro ao deputado que busque entender o porquê de haver presos ociosos. Acredito que talvez a razão mais óbvia seja a superlotação carcerária, que também causa inúmeras violações de direitos humanos, aumento da criminalidade e da violência urbana, gastos absurdamente altos do Estado com presos. E que perceba que há soluções possíveis, embora elas talvez não sejam as mais fáceis ou vendáveis como parte de um discurso populista de Lei e Ordem e vingança da sociedade contra os presos. Talvez se tiver ao menos uma fagulha de amor à liberdade e não for apenas o populista terrível que parece ser, comece a trabalhar com soluções difíceis ou menos populares, mas que realmente representem alguma mudança em relação à triste realidade dos presídios brasileiros.

É necessário que repensemos as causas do nosso Estado penal e do encarceramento em massa, que entendamos como chegamos até aqui e o que podemos fazer pra mudar, quais são os dispositivos existentes, quais deveriam existir, quais devem ser extirpados… Não se trata de tarefa fácil, mas sim de tarefa necessária, para a qual talvez sejam reservados menos espaços em tablóides, blogs e veículos de qualidade duvidosa. Torçamos para que o assunto comece a ser levado com mais seriedade.

P.S. Fica aqui registrada minha intenção de em breve abordar com mais clareza alguns dos problemas relativos ao cárcere e ao direito penal brasileiro.


foto danielDaniel Costa é graduando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, enfatizando o estudo do direito público e a multidisciplinariedade, buscando associar o estudo do Direito com as Ciências Sociais, em especial a Ciência Política. Pode ser contactado neste email. Outros textos de Daniel Costa.


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30 Comentários

  • Espero que abordem o assunto com mais profundidade no futuro, apresentando ideias que deram certo e abandonando fundamentações ideológicas fracassadas.

  • Um politico que se diz liberal deveria começar propondo mudanças que reduzissem a população carcerária, como penas alternativas para crimes não violentos e agilização dos julgamentos. Só após o sistema carcerário se tornar eficaz é que se pode pensar em fornecer oportunidades de trabalho e de educação e aperfeiçoamento profissional aos presos.

  • Texto excelente, que mostra a falta de bom senso de muitos de nossos politicos .

  • Esperar o que de uma pessoa que atropelou e matou uma pessoa e escapou da justiça por ter influência na sua cidadeca interiorana, mediante engavetamento de inquérito.

  • Excelente texto, devidamente compartilhado com colegas do Direito e do meu curso, ciências sociais. Vê-se claramente hoje que diversas instancias passam por cima da ciência, das soluções mais duradouras e mesmo da cf. Vide fosfoetanolanina, manobras legais que nesse clima de impeachmeant ocorrem todos os dias, etc.

  • Um texto de esquerda sem dúvida. Seria massacrado pelos libertários. E os comentários … pior …

    • Desculpa ai então o fudidão! Pelo jeito vc é libertário. Pq vc não massacra o texto e todos os comentários de forma objetiva, pra provar toda a sua superioridade intelectual? Vem pro pau (debate, claro) que nem homem e pare com essas evasivas covardes…

      • Filho estou sem tempo. E isto não é uma briga de Facebook. Porem ao menos vc esta aberto a ouvir e isto é bom. Recomendo o site mises.com.br gosto de la e daqui. Porem não acredite (eu não acredito) em tudo que dizem (esses libertários são meio malucos…) , mas suas demonstrações matemáticas são ótimas. E filho … Se um estereótipo ou ideologia é adequado a mim é o pragmatismo.

        • Cara, talvez seu primeiro comentário tenha sido meio estigmatizador, mas enfim, pelo menos abriu o debate. Eu andei vendo uns textos do mises (temos que ser ecléticos, e nisso lhe parabenizo), mas o que vi lá foram alguns tipos de posts: uns bem estranhos, que usam uns argumentos furadíssimos, tipo este sobre a escravidão http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=681 , que são embasados no vácuo; e outro que apresentam soluções aparentemente simples para problemas complexos, como a maioria sobre o aparecimento público de corrupção no Brasil. Eles também apontam umas correlações verdadeiras, mas deixam de lado muita coisa (p.e. “liberdade econômica” e felicidade, enquanto esquecem de mencionar a situação colonial de alguns países e, mais importante, COMO saíram dela e que tipos de política utulizaram). Parabenizo-os por explicitar alguns pontos que usamos como chavões, mas o posicionamento político econômico do site é deplorável e enviesador (assim como Veja, 247, Carta, etc), porque simplesmente rebate argumentos contrários com ad hominem simples. Reclamam da censura em sites de adversários, mas fazem o mesmo nunca aceitando os meus comentários. Abraço

          • Concordo contigo quanto ao mises.org.br. Veja este que horror: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1878. Como eu disse não acredito em tudo mas gosto dos artigos econômicos e históricos e a coragem em abordar assuntos impensáveis (me lembra um livro de Jean Guitton) mesmo que seja para concluir a mesmice ou para discordar deles.
            Sim de fato falta um ‘algo’ em algumas de suas ideias.
            Quanto a soluções simples para assuntos complexos que me chamou atenção em seu comentário isto me remete as minhas próprias atividades: Quanto mais eu ‘regulo’ um sistema complexo mais sujeito a erros ele fica já que não sou capaz de prever todas a variáveis e seus estados. Porém soluções simples não resolvem o caso. Como fica? A natureza resolveu isto por tentativa e erro. Isso é um clássico embate entre libertários e estadistas da esquerda: Regulamentação ou Desregulamentação de uma atividade?
            Eu não decidi ainda. E é por isto que li seu artigo, o deles e de outros tantos.
            Obrigado pelo comentário. Desculpe o primeiro comentário ácido mas faço isso de propósito para ter a oportunidade de me desculpar depois e cultivar algo que falta na internet: discutir ideias com humildade sem vaidades e ideologias.
            Agora te digo por experiência própria: Visitei um presídio destes poucos privados no Brasil. Funcionam que é uma beleza comparado aos públicos. Limpo, organizado, eficiente, seguro, barato e humano.

          • É, pois é, sairia um livro grosso com umas escorregadas de sites mais voltados à pregação de suas ideologias do que com o debate sério de ideias (veja que não é só o que estávamos falando). Igualmente admiro alguns sites que possuem a coragem de abordar certos tabus, pois aí conseguimos entender algumas coisas q não óbvias. Achei pertinente esse seu exemplo sobre regular vs não regular, realmente, interferir em um sistema de múltiplas variáveis é muito complexo e inesperado (digamos por nós, um cara formado em eletrônica e um outro na metade de Ciências Sociais). Quanto a esses presídios privados, pelo que vi eles são mais caros, mas também oferecem algumas coisas a mais, e precisaríamos de um estudo mais aprofundado para saber quanto custaria um público com as mesmas condições (já que queremos ressocializar as pessoas, não gastar um monte de dinheiro segurando-as eternamente presas ou retornado para a sociedade pessoas mais periculosas). Além disso, tenho um pouco de receio (não sei se fundamentado ou não) de que isso torne-se uma indústria, na lógica do “quanto mais presos, melhor” – óbvio, precisamos também de algumas mudanças na legislação e na própria eficiência da polícia, enfim, o papo vai longe. Por fim, gostaria de agradecer pelo debate educado (uma coisa rara hoje na internet, deve perceber) e avisar que, mesmo que seu primeiro comentário não tivesse o intuito de provocar o debate, tudo bem, pois depois partiu para um diálogo sério. Por esse baita papo e pela educação, diria “Você não merece Palmas, mas o Tocantins inteiro” – desculpe pela piada velha e sem graça.

            Abraços

          • Oi Eduardo,

            Dei uma lida nesse post que tu colocou. Acho que ponto em que ele queria chegar era que, da mesma forma que Antiabolicionistas diziam que os escravos não teriam condições de viver sozinhos, ou que devido à natureza haveria caos, o governo hoje ( Aqui entra a analogia do governo e o senhor de escravos) faz o mesmo.

            Discordo do mises. Sou a favor do estado. Esse comentário é só um adendo mesmo.

            abs

          • Mateus, espero que leia a mensagem. Enfim, não havia pensado este ponto de vista – admito, só agora passei os olhos com mais rigor pelo texto. Os argumentos são aparentemente válidos, porém um exame minimamente aprofundado pode apontar alguns erros.
            Primeiramente, os “argumentos” 9 e 10 são meros ad hominen travestidos de uma linguagem bonita. Veja: “9. Tentar acabar com a escravidão é algo (ridiculamente impraticável e utópico); somente um (sonhador de cabeça perturbada poderia defender uma proposta tão ridiculamente ilógica e absurda). (Pessoas sérias e sensatas não podem se dar ao luxo de perder tempo considerando ideias tão irrelevantes e parvas).” parênteses meus.
            Para responder a muitos dos oito argumentos restantes, a resposta é simples: tanto o Estado quanto a escravidão são produtos históricos, não coisas naturais que ocorrem sempre e em todo lugar.
            Sim, concordo com alguma coisa – que me parece ser explorada pelo site a partir do senso comum estatista, virado contra ele mesmo. Todavia, a argumentação como um todo, em minha visão, não se sustenta, embora entenda o caráter do texto e as analogias.

        • Nao vou responde pq estou sem tempo. Mas recomendo aleitura do site X que la vc vai ver como seu argumento (ou o texto em questao) pode ser massacrado.

          (Irritante nao?)

          • Sou um pouco cético quanto ao site Mises para embasar este tido de debate, pois eu costumo ver uma carência de outras fontes em seus defensores.
            Se puderem me fornecer outras fontes para que eu cruze os dados com os links citados e estabeleça um parâmetro de veracidade eu serei grato.

  • Daniel, vc poderia explicitar melhor, legalmente, o que foi dito nessa parte?
    “a insana norma que obriga presos a trabalharem 8 horas por dia e receberem no mínimo um salário mínimo, o que obviamente acaba por impossibilitar que os presos trabalhem” – quarto parágrafo.
    Agradeço

  • Excelente textos, por favor, faça mais textos onde mostra o atrito entre ideologias e direito

  • Baseado em que fontes o autor prova que a maioria dos presidiários brasileiros ociosa quer trabalhar. Muito achismo nesse texto, sem contar o fator ideológico.

  • Recentemente, estava debatendo privadamente, com meu professor de processo Penal, sobre o nosso sistema penitenciário. Queria ver mais aprofundado o tema.
    Referente ao texto, é normal vermos pessoas da direita brasileira, tentar fazer medidas a curto prazo e achar que vai funcionar. E ainda um deputado, achando que é deputado federal.

  • Carlos Martim Bruckmann

    Não conhecia o Xadrez Verbal, acabei achando-o em função de uma varredura que estou fazendo deste Dep. Estadual Gaúcho Marcel van Hatten, que só ocupa o cargo que tem por outras destinações dos que estavam na frente dele com votos, pois o van Hatten ficou na suplência.
    A primeira vez que ouvi falar dele foi em um hangout no Youtube; até achei interessante algumas idéias suas, mas quando vi a sua Xenofobia contra que pensa diferentemente dele, passei a acompanhá-lo umm pouco mais de perto e criticar os seus deslizes, tudo com muita educação……porém não posso falar o mesmo de seus retornos, feitos por perfis fakes.
    o erros erros de digitação me perdoem, mas com dedos amputados e pressa ….

    Vou olhar com calma o vosso Canal.

    Saudações Gaúchas.

    detalhe…. muito bom o vosso texto..bastante esclarecedor.

  • Texto de esquerda, site de esquerda, autor de esquerda. Traduzindo, Ciritica vazia . A idéia é boa mas sugiro que o autor e todos que concordam adotem os presos que tanto têm peninha. LIXO!

  • Não sou da área de Direito mas este artigo do da Lei de Execuções Penais não corrobora o projeto do deputado?
    d) ao ressarcimento ao Estado das despesas realizadas com a manutenção do condenado, em proporção a ser fixada e sem prejuízo da destinação prevista nas letras anteriores.

  • adotem os presidiários então, levem-os para suas casas, para ser seus empregados, levar suas filhas para o colégio…. Bandido está cheio de direitos nesse nosso país, enquanto cidadãos de bem vivem num “presídio”

  • A questão é simples: todo reacionário é um doente mental.

  • Esse Van Hatten me parece ser apenas mais uma caçamba despejada no aterro sanitário que se tornou a política nacional pós PT. Lixo orgânico não reciclável que nem para adubo serve.

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