Sobre zumbis apopléticos, medo e oportunidades

– por Daniel Costa
Caros leitores, temos hoje a estreia de mais um colaborador no Xadrez Verbal, Daniel Costa, graduando em Direito e meu parceiro de torcida. Espero que gostem do texto e que venham mais textos dele por aqui.
– Texto escrito no dia 18 de março de 2016
Hoje me lembrei da vitória acachapante do PSDB nas eleições de 2014 aqui em São Paulo, Estado berço do PT, partido que se organizou principalmente a partir das greves operárias do ABC e da aliança dos operários com os movimentos sociais, num momento de ruptura institucional no Brasil. Alckmin ganhou em primeiro turno, sendo o vencedor em todos os municípios do Estado menos um e dominando praticamente todos os distritos da capital. O PSDB elegeu um número enorme de deputados e Serra foi eleito para a vaga que foi de Eduardo Suplicy por mais de duas décadas. Além dos resultados da eleição, que não me agradaram, me deixou ainda mais incomodado a reação automática de muita gente, não só na hora, mas mesmo dias depois: “ah, o povo é burro”, “ah, não sabe votar”, “São Paulo é o lugar mais reacionário do Planeta Terra”, entre outras frases que transferiam a culpa para os eleitores. Como se tudo fosse um mar de rosas no governo federal, como se as alternativas ao governador Alckmin fossem muito boas (Skaf, presidente da FIESP, Alexandre Padilha e Maringoni, petista envergonhado, não são grandes alternativas), como se a militância dos partidos de esquerda tivesse sido realmente efetiva nos últimos anos, etc. No fim, a ineficiência do progressismo em ser propositivo em São Paulo foi a principal culpada. Achar que a culpa é do eleitor não passa de um delírio autoritário (“eu sei o que é melhor pra vocês!”). Voltarei a este delírio em breve.
Nesta semana, aconteceram diversos atos em defesa da “legalidade”, da “democracia” e da “república”, que, em realidade, não passavam de atos envergonhados em defesa do governo, como se os próprios participantes achassem que defender o governo fosse feio. É óbvio que tais atos tinham como objetivo associar o governo, o principal partido do governo e seus membros à democracia, à república, à legalidade e a outros substantivos abstratos que estamos acostumados a ver com bons olhos (não sem motivo). São repetidos mantras de que se a oposição ganhar vai ser o fim de tudo isso, de que não devemos cometer o mesmo erro de 64, e que por isso é melhor nos entregarmos a uma defesa servil e afetuosa do governo, pra evitar o “golpe”. Qualquer hipótese em que o partido atual saia do poder é um golpe.
Até mesmo o impeachment, instituto do direito brasileiro utilizado pelo PT contra todos os presidentes eleitos antes de Lula, virou sinônimo de golpe. Assim como o Pixuleco, boneco do ex-presidente, foi tachado de fascista, “justificando” confrontos entre simpatizantes e adversários do governo — o mesmo governo que quando era oposição não cansava de confeccionar bonecos retratando os presidentes em exercício. Tudo é um sinal do “golpe fascista” em curso. Estranhamente, quando membros do governo realizam verdadeiros malabarismos jurídicos e institucionais para evitar que a lei seja cumprida, não há nada de golpe. Dizer que regras postas previamente são golpe não só é errado, como ruim para as instituições do país. O Impeachment só seria golpe se houvesse algum vício processual, o que até aqui não parece haver. De maneira semelhante, os excessos do Ministério Público, da Polícia Federal e do Judiciário têm de ser apurados e combatidos.
Falando em lei, teve gente comemorando o ataque com Choque e blindados contra manifestantes contrários ao governo que ocupavam a Avenida Paulista, hoje pela manhã. Quando os setores progressistas comemoram o uso de bala de borracha, bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo — em suma, da mão de ferro da repressão estatal da qual muitos de nós já fomos vítimas — , a situação é mais grave do que parece. No fim das contas, fica o gosto amargo da arbitrariedade e do desprezo por qualquer regra ou instituição e a pergunta: pera lá, “Direito é poder?”. Ainda tenho esperança de que não seja, de que possamos construir uma sociedade em que regras valham para todos, em que garantias individuais sejam respeitadas, em que os poderosos não sejam tão poderosos. E não acho que faça parte da construção desta sociedade deixar de lado (ou pior, passar por cima) as instituições, mas sim torná-las mais permeáveis, horizontais, representativas e acessíveis a todos.
Como dito antes, culpar os insatisfeitos foi o modus operandi em relação às eleições no Estado de São Paulo em 2014 e está sendo agora. Os descontentes são o grande vilão, não há motivo para revolta, nem quando vazam conversas mostrando a podridão das estranhas do poder. E, cada vez mais, os descontentes são menos a caricatura do “homem branco rico de classe média fã do Bolsonaro e do Aécio” e mais pessoas comuns revoltadas com “tudo isso que está aí”. Acho que o espírito do “Que se vayan todos” se faz mais e mais presente nas manifestações contrárias ao governo: basta ver o secretário de Segurança de São Paulo sendo enxotado enquanto é chamado de “fascista” e “matador de pobre”, ou mesmo as reações negativas ao grupelho de políticos proeminentes bem votados em 2014 (Paulinho da Força, Alckmin, Aécio, entre outros).
Alguns vão dizer: “mas isso é justamente o problema! No vácuo político é que surgem os fascistas, os aventureiros, os oportunistas!”. É verdade, se se forem todos, o surgimento de oportunistas fica mais provável, como podemos ver com Collor, Trump e Berlusconi. Este último surgiu no rastro da Mãos Limpas, operação italiana semelhante à nossa Lava Jato e inspiração do juiz Sérgio Moro. Parecem bons argumentos para a prudência. E são. Mas também mostram que estes aventureiros agarraram oportunidades criadas por vácuos políticos, crises de representação, momentos de ruptura. É nestes momentos que é necessária a coragem para saber quando realizar o leap of faith, dar a cara a tapa e buscar alternativas, deixar de lado o que temos como dado e tentar mostrar que outro mundo é possível, que há alternativas a um binarismo estanque.
Se você não está contente com o governo, a saída não é protestar, dizem. A saída para essas pessoas é abaixar a cabeça, aceitar que só existem dois lados na questão (já prevejo os “legal, mas de que lado você samba?”) e fazer como boa parte dos movimentos sociais e grupos políticos: se limitar à famosa crítica a favor (o já citado candidato Gilberto Maringoni é um ótimo exemplo de mestre nesta arte), esperando receber um punhado de migalhas, quem sabe um dia as coisas melhoram. Se fizer alguns truques bonitinhos, uma ou outra coluna falando para ficar mas melhorar, ignorar solenemente a sanção da lei antiterrorismo ou o genocídio dos povos indígenas, dizer que odeia o governo e sair de vermelho gritando “não vai ter golpe”, dizer que o Lula é o rei do feminismo, quem sabe ganha um ossinho. Importante lembrar que quem foi no dia 13 foi automaticamente tachado de pró-Aécio, amante do Bolsonaro, etc. (se não é, mereceu ser escorraçado por uma manada de gente violenta), mas para defender o PT é possível voto crítico e comparecimento ao ato sem ser petista, só pró-democracia.
Cabe à esquerda e ao progressismo brasileiro se reinventar, deixar de lado essa tara pelo poder, deixar de ser o cachorrinho de quem domina. Chega de defender um governo em estado de putrefação, o zumbi apoplético do título. Ao meu ver, partidos políticos, movimentos sociais, grupos de pressão, pessoas comuns que buscam soluções para os problemas sociais não têm mais nada a ganhar defendendo este governo. E têm muito a perder: a oportunidade de criar novas alternativas progressistas, de não ficar para trás quando todos perceberem o esgotamento do atual governo, etc. Podem fazer isso em diversas frentes, que aos poucos vão se mostrando mais ou menos viáveis. Consigo pensar em muitas possibilidades não necessariamente excludentes: ampliação da participação popular no governo; organização com auxílio de blockchain, Ethereum, tecnologia em geral; novos partidos, novas correntes partidárias; ocupação das ruas; autogestão; fortalecimento de redes de cooperação; agorismo; desobediência civil; educação política entre muitas outras. Talvez algumas ou muitas destas alternativas se mostram inócuas, mas só saberemos se são efetivas ou não se tentarmos, se não realizarmos o tal leap of faith.
No fim das contas, esta é a minha sugestão: usemos bem as oportunidades que se apresentam, criemos alternativas à letargia política e à obrigatoriedade de defender um lado. Deixemos o medo de lado.
Daniel Costa é graduando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, enfatizando o estudo do direito público e a multidisciplinariedade, buscando associar o estudo do Direito com as Ciências Sociais, em especial a Ciência Política. Pode ser contactado neste email. Outros textos de Daniel Costa.
Como sempre, comentários são bem vindos. Leitor, não esqueça de visitar o canal do XadrezVerbal no Youtube e se inscrever.
Caso tenha gostado, que tal compartilhar o link ou seguir o blog?
Acompanhe o blog no Twitter ou assine as atualizações por email do blog, na barra lateral direita (sem spam!)
E veja esse importante aviso sobre as redes sociais.
Caros leitores, a participação de vocês é muito importante na nova empreitada: Xadrez Verbal Cursos, deem uma olhada na página.
Gostei muito do texto. Mas em relação ao fascismo o que estou vendo é um pouco diferente. Eu não diria que temos uma política fascista em ascensão, mas eu identifico um sentimento fascista nos movimentos. Principalmente nos antigovernos. Vejo eles vaiando políticos dos mais diversos, mas não vaiaram Bolsonaro.no dia 13. Se incomodam com a cor vermelha nas roupas das pessoas, mas não se incomodaram em protestar ao lado de movimentos como os carecas do ABC. Concordo plenamente que a esquerda tem que ir além do PT. Mas o medo de que sem o PT as políticas neoliberais se aprofundem ainda mais é muito maior.
André, acho complicado fazer esse tipo de generalização.
Pra começar que o Bolsonaro foi vaiado no Rio de Janeiro, sim. Pelo que eu sei, inclusive foi impedido de fazer discurso.
No caso dos Carecas do ABC, não sei te dizer se houve incômodo — não estava na rua, nem como observador –, mas eles são talvez a faceta mais detestável da multiplicidade de pessoas que foram protestar contra o governo, né. Fica a minha dúvida: é melhor se recusar a participar do protesto porque eles estão presentes ou talvez tenha algum sentido em disputar lugar e importância? Como o pessoal mais ligado à política institucional diz, disputar essas pessoas, que no caso estão descontentes.
Acho difícil expressar o que quero dizer, pq fica parecendo que estou generalizando, mas não estou ignorando a multiplicidade desses protestos. Não quero dizer que o Fascismo é a causa, mas pode ser um dos fins. Tem muita gente que está servindo de massa de manobra (em ambos os lados). No pró-impeachment há um “anti-várias-coisas”. O pessoal é anti-partidos, anti-camisa-vermelha, etc. Mas não é tão anti-autoritarismo. Pode aparecer casos, como vc citou, que o pessoal chama o secretário de segurança de SP de matador de pobre, vaiem o Bolsonaro no Rio, etc. Mas Bolsonaro não foi vaiado em Brasília, o pessoal tira selfie com a PM mostrando não fazer nenhum tipo de reflexão enquanto ao autoritarismo ainda presente nessa instituição, tem uma galera que vai lá pra pedir volta dos militares, etc. Muita coisa convive junto no mesmo protesto, e isso mostra, talvez, que esse lado mais autoritário seja mais tolerado entre os manifestantes pró-impeachment (se eles expulsão políticos, pq não podem expulsar os declaradamente fascistas, como os carecas do ABC?). E o resultado disso pode muito bem ser um fortalecimento ainda maior da representatividade dos setores mais reacionários dentro das instâncias legislativas e executivas (municipais, estaduais, e federais). O discurso binário de que a esquerda gosta de bandidos pq defende direitos humanos, em contrapartida com a direita que diz que bandido bom é bandido morto, por exemplo, pode ser ainda mais acentuado. PM gerindo escolas públicas tende a aumentar, pq a culpa do ensino ruim é do Paulo Freire.
Pelo pessoal pró-impeachment parecer tolerar um pouco mais o autoritarismo, temo que ele seja a tendência política para os próximos anos.
Pelo menos EU, quando digo que está em curso uma ascensão fascista, é isso que quero dizer. Não que viveremos um estado de exceção. Espero ter sido mais claro, desta vez. Não discordo de vc, só acho que existe essa faceta mais autoritária que precisa ser muito bem observada. E obrigado pela sua atenção.
Parabéns pelo texto, Daniel
Se cabe aqui um conselho, procure um pouco mais de imparcialidade nos fatos e nos seus adjetivos para não tornar o texto tão apelativo e perder força referencial.
O exemplo usado para justificar “delírio” insinuado no primeiro parágrafo, por exemplo, não mostra o outro lado da moeda, como o famoso caso de Mayara Petruso (http://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2012/05/16/justica-condena-universitaria-por-preconceito-contra-nordestinos-no-twitter.htm).
Seria legal um texto sobre todos os conceitos que ele mostrou no segundo parágrafo “participação popular no governo; organização com auxílio de blockchain, Ethereum, tecnologia em geral; novos partidos, novas correntes partidárias; ocupação das ruas; autogestão; fortalecimento de redes de cooperação; agorismo; desobediência civil; educação política”. É claro que eu poderia buscar sobre esses assuntos na internet, mas você parece ter um conhecimento sobre isso muito além do wikipedia.
Abraços
Itagyba, antes de mais nada, obrigado.
Não achei o texto apelativo, sinceramente. Se trata de um artigo de opinião, e opiniões têm lado, né. Mas obrigado pelo toque.
O caso da universitária do Twitter, Mayara, realmente serve para mostrar outro delírio autoritário. Não o mencionei porque não me parecia relevante para este texto em particular. Minha intenção era justamente a de mostrar que não são apenas os “reaças” que têm esse tipo de pensamento. No caso, acho que o raciocínio que vi de muita gente aqui em SP me incomoda um pouco mais, porque não está eivado de preconceito. É, a bem da verdade, um raciocínio — deixou de ser apenas uma expressão raivosa cheia de preconceito e ódio, se tornou uma racionalização, uma explicação. E me incomoda por ser dada como uma explicação que tudo resolve, assim como explicações simplórias do tipo “ah, votou assim porque odeia pobre no aeroporto”, como se todas as razões para discordância fossem ilegítimas, desonestas ou frutos de estupidez.
Interessante você falar a respeito dos conceitos apresentados. Eu busquei brevemente textos explicando de maneira acessível tais conceitos para linkar, mas acabei me esquecendo de fazê-lo.
Abraços e obrigado pelo comentário
Daniel, um texto muito bom, mas acredito que você acabou caindo em generalizações, principalmente para esquerda. Quando diz que o movimento pró-democracia é de apoio ao governo, entra em contradição com a participação do MST, por exemplo, e de várias outras pessoas que são contra o governo, mas acreditam que está havendo um “golpe” contra a democracia (particularmente, acho que esse termo é exagerado e que o processo de impeachment, particularmente, é totalmente democrático). Tomar a autoridade para dizer que eles são o contrário do que dizem acho, no mínimo, abusivo. O mesmo vale para aqueles que dizem que quem estava no protesto do dia 13 era pró-Bolsonaro, fascista, etc. Outra generalização condenável.
De resto, é sempre bom ter alguém que escreva contrapontos fundados (coisa difícil atualmente) com relação à esquerda política atual.
Waine, antes de mais nada, obrigado pelo comentário e pelo elogio.
Claro, eu consigo entender que muitas das pessoas que foram aos atos pela democracia e afins não se identificam plenamente com o governo ou gostam de se identificar como oposição à esquerda. Mas acho que em especial grupos que se colocam como “voto crítico” ou “oposição à esquerda” não conseguem cortar os laços com o PT e o governo, devido a motivos que me parecem justamente afetivos, variando do amor e da nostalgia ao puro medo — esse o mais perigoso dos afetos, quando tratamos de política.
Mas realmente, acredito que talvez tenha sido um erro generalizar totalmente as pessoas que compareceram ao ato pró-democracia. Neste sentido, ressalto uma observação que me pareceu razoavelmente precisa do Guga Chacra, jornalista da GloboNews:
“Como entender as brigas de política brasileira nas redes sociais?
Temos 4 grupos no debate político no Brasil
A) O grupo que é a favor do impeachment por ser contra a corrupção e sem defender especificamente um partido ou ideologia política
B) O grupo que é contra o impeachment por discordar das investigações do Sérgio Moro, embora não apóie Lula ou Dilma
C) O grupo a favor do impeachment ligado a algum partido opositor ou defensor de ideologias autoritárias
D) O grupo contra o impeachment e defensor de Lula e Dilma, independentemente das acusações de corrupção
A manifestação pró-impeachment (a maior) reunia membros do A e C, mas a maioria era do A. A manifestação contra o impeachment (a menor) reunia os membros do B e do D, mas a maioria era do D”
Talvez seja uma descrição mais precisa.
Abraços
Qual a legitimidade que tem um réu da Lava Jato para conduzir um processo de impeachment? E como disse o presidente do Senado, impeachment sem caracterização de crime de responsabilidade é outro nome