Síria: A História da humanidade como um refém de guerra

O autointitulado Estado Islâmico do Iraque e do Levante chegou ao sítio arqueológico sírio de Palmira, Patrimônio Cultural da UNESCO. “Autointitulado”, pois, como até Barack Obama já falou, não se trata nem de um Estado nem de uma representação da população islâmica. Além de questões estratégicas da geografia da região, com a expansão das áreas controladas pelo EI na fronteira entre a Síria e o Iraque, é visível a política do grupo em relação aos tesouros arqueológicos e históricos que ficam sob seu domínio. A última ofensiva do EI tanto enfraquece os governos da região quanto fortalece o potencial midiático, e talvez também os cofres, do grupo.

O teor iconoclasta de movimentos religiosos radicais não é novo, tampouco exclusivo do Islã, mas foi com o Taliban afegão que esse tipo de conduta chegou a um novo patamar, ao menos no mundo contemporâneo. O caso mais conhecido foi a destruição de duas estátuas de Buda no vale de Bamiyan, esculpidas diretamente da encosta rochosa. Em março de 2001, as estátuas, datadas do século VI, foram dinamitadas pelo Taliban, gerando repercussão no resto do mundo, com muitos protestos. O EI aprendeu a lição e coloca a iconoclastia como um dos elementos de sua violência midiática. Execuções das mais absurdas transmitidas pela internet, com múltiplas câmeras, transformando a barbárie em espetáculo e construindo a imagem do grupo.

budas

A maior estátua de Buda no vale de Bamiyan, antes e depois do Taliban

O primeiro espetáculo para as câmeras foi após a tomada de Mosul, segunda maior cidade do Iraque, no norte do país. O EI destruiu diversas estátuas babilônicas, tudo filmado e disponibilizado na internet. O museu de Bagdá afirmou que muitas das estátuas destruídas eram réplicas, mas que algumas obras originais foram perdidas, datadas do século VII. Posteriormente, o EI destruiu o sítio arqueológico de Nimrud, cidade fundada mais de três mil anos atrás e antiga capital assíria. Novamente, a espetacularização foi o tom, proporcional ao número e intensidade de protestos recebidos. A mensagem do EI fica clara, sedutora aos potenciais voluntários do mundo todo: temos o poder de apagar e de reescrever a História.

Mais que isso, o grupo está lucrando. A destruição de patrimônio histórico e arqueológico financia a luta radical. Artefatos dos locais tomados foram encontrados em coleções e em leilões na Europa, atualmente alvo de investigações. Torna-se um ciclo absolutamente vicioso. Destruição da História, impacto midiático, sedução de voluntários e financiamento do extremismo, todos simultâneos. Isso colabora para novas ofensivas do EI, como a realizada na segunda metade do presente mês, tanto na Síria quanto no Iraque, onde o grupo tomou Ramadi. A cidade fica apenas quarenta quilômetros de distância de Bagdá.

Entre Ramadi e Badgá, está apenas a cidade de Fallujah, local da principal resistência contra a invasão dos EUA em 2003. Uma eventual chegada do EI na capital iraquiana poderia fazer o frágil governo local desmoronar. Parte do país é controlado pelo EI, outra parte pelos curdos, o governo não consegue articular a população para lutar nem aproveitar o apoio material dos EUA. O Secretário de Defesa Ash Carter afirmou que o exército iraquiano é derrotado por “falta de vontade de lutar”, o que ainda gerou uma distensão entre os dois aliados. Países do Golfo Pérsico cobram maior ação dos EUA contra o EI, mas Obama não quer comprometer o uso de forças militares no solo, apenas apoio material e ataques aéreos.

Na Síria, a ofensiva do EI tomou a cidade de Tadmur, uma das maiores do país. Tadmur é o nome da cidade moderna que corresponde à antiga Palmira, fundada cinco mil anos atrás e uma das cidades mais prósperas da Antiguidade. Uma das principais estâncias da Rota da Seda, presente no Antigo Testamento e foi parte do Império Romano, demonstrando parte da riqueza arqueológica do lugar. Palmira tornou-se o novo refém do EI, já se especulando sua pilhagem. O sítio arqueológico já estava danificado pelos combates, mas agora pode ser totalmente destruído.

Contribui para o cenário de avanço do EI a falta de articulação regional. Dois grupos curdos lutam contra o EI, além da oposição síria. Três coalizões também combatem o EI; a da OTAN, liderada pelos EUA, a sunita, liderada pela Arábia Saudita e Jordânia, e a xiita, liderada pelo Irã, com participação do Hezbollah. Além disso, os governos da Síria e do Iraque não conseguem diálogo conjunto, pois, além de diferentes pressões internacionais, suas fronteiras estão ocupadas pelo EI. Esse é o primeiro passo que deve ser corrigido para vencer a guerra. Além dos milhares de mortos, vários de forma cruel, e do mais de um milhão de refugiados na fronteira truca, agora o extremismo percebeu um novo filão para lucrar, tomar como refém e destruir: a História da humanidade.


assinaturaFilipe Figueiredo, 29 anos, é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.


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