Será que aprendeu as lições sobre preconceito em um festival de rock?

A música é uma das maiores expressões culturais e artísticas da humanidade e, como toda forma de arte, não é estanque, ela dialoga com o cotidiano, com a política. Pode demonstrar, ou denunciar, aspectos de uma sociedade. Esse autor gosta, dentre outros estilos, de rock’n’roll e de heavy metal, e já tratou do tema aqui no Xadrez Verbal, como na morte de Joe Cocker. E um fenômeno social e político brasileiro é o de roqueiros e headbangers (“batedores de cabeça” em tradução literal, termo sobre quem gosta de heavy metal) que possuem posturas extremamente conservadoras. Não se trata de diferentes argumentos e perspectivas políticas válidas, mas de uma postura moralista, julgadora. Muitas vezes chega-se ao preconceito, o que é, no mínimo, contraditório quando se trata de rock’n’roll e de heavy metal.

O mais explícito e simples é o caso de um roqueiro ou headbanger que seja racista. Sim, a pessoa é racista porque é babaca, não porque gosta de determinada música. O ponto é o contrário: alguém que aprecie o gênero musical que descendente diretamente de um caldeirão de influências de música afro-americana, como blues, jazz e gospel, deveria ser qualquer coisa, menos racista. A mais extrema banda de metal escandinava está ligada ao som de Chuck Berry. O aprendizado, aqui, é simples e direto: não dá para ter um preconceito étnico contra uma cultura que, em parte (já que temos também as influências do country, por exemplo) se deve a esse grupo étnico.

Dada a devoção ao rock, ao heavy metal, às suas bandas preferidas, o roqueiro é um devoto. “Iron Maiden is my religion” (Iron Maiden é minha religião; Iron Maiden é uma banda britânica de heavy metal). O comportamento cria uma espécie de ideologia que coloca alguns gêneros musicais como superiores; o rock, o “metal verdadeiro”, um comportamento que gera piada e sátiras, como os “tr00s”, brincadeira com o termo em inglês true metal. Por consequência, outros gêneros são inferiores, muitas vezes, aqui no Brasil, os gêneros tipicamente locais, como axé ou pagode. Que não precisam agradar ao ouvido de ninguém, sequer agradam aos desse autor.

No país, soma-se o fato que boa parte das pessoas que gosta dos gêneros aqui tratados são, normalmente, pessoas que se dedicam ao estudo da língua inglesa, já que o idioma é praticamente a língua universal do rock. Não existe um headbanger que não tenha aprendido um pouco de inglês com um encarte com as letras e um dicionário na mão (ou no Google, para a nova geração). Isso cria ainda mais uma aura de superioridade ao estilo, ao gênero e aos seus adeptos. E quem julga o que o outro coloca em seu fone de ouvido, pode muito bem julgar o que o outro pensa ou como leva sua vida. Quando o rock deveria ser sobre exatamente o contrário.

Para termos um parâmetro concreto e retirar as possibilidades de interpretação político-partidária (falo de conservadorismo em um sentido social, não econômico), vamos pegar as principais bandas que participaram do festival Monsters of Rock em São Paulo. Alguns dos principais nomes da História do rock e do heavy metal, como Judas Priest, banda inglesa fundada em 1969 que já vendeu mais de quarenta e cinco milhões de álbuns. Cujas letras falam de temas que dificilmente combinam com uma interpretação legalista da vida; claro, podemos argumentar que é licença poética. Vamos então para o fato de uma das maiores bandas da História do rock ter também um dos maiores vocalistas do gênero. Assumidamente homossexual.

Rob Halford é, além de homossexual, alguém que, hoje, fala do tema abertamente e tranquilamente. Saiu do armário em 1998, em uma entrevista que o levou às lágrimas pelo alívio de falar do tema. Afirmou ainda que manter-se no armário por tantos anos causou depressão e o consequente abuso de drogas e de álcool. Ou seja, assumir-se gay, sem medo de se esconder, em seu estilo próprio de viver, foi também uma questão de saúde. E certamente muitos headbangers que adoram os discos do Judas Priest já chamaram alguém de “viadinho” por causa de uma roupa ou acham que “pode ser gay, mas não precisa ser na rua”.

Falando em abuso de drogas, um dos principais shows foi do Príncipe das Trevas Ozzy Osbourne. Se o leitor não sabe quem é, bem-vindo ao século XXI. Vocalista original do Black Sabbath, um dos pais do heavy metal, e com uma carreira solo absurda, Ozzy já vendeu mais de cem milhões de álbuns, na estrada desde 1967. E, na maior parte do tempo em que fez isso, estava sob efeito de uma miríade de substâncias. Tudo o que você, leitor, fez na vida, somado, seria um final de semana monótono na vida do Ozzy nos anos 1980. Hoje, Ozzy está abstêmio na maior parte do tempo e conta suas histórias trágicas com as drogas e o álcool em, por exemplo, livros.

Esse texto, então, advoga pelo uso das drogas? Pelo contrário. O ponto é ver um senhor de sessenta e seis anos de idade no palco e vibrar. Vibrar com um cara de mente criativa, que ganhou dinheiro em parte devido ao uso de drogas (ele compunha e gravava muitas vezes chapado, segundo sua própria biografia). Enquanto vibra com Ozzy, no entanto, há alguns headbangers que advogam por penas mais rígidas pela posse de drogas, afirmar que o usuário alimenta o tráfico, então, o usuário é também um criminoso. Que “drogado deveria morrer” ou que não tem recuperação. Quando a prova da possibilidade de recuperação está ali, no palco, fazendo o que você sonha em fazer. O roqueiro que pensa assim deveria, ele mesmo, matar o Ozzy, um drogado que deu muito dinheiro para o tráfico.

Citei o abuso do álcool. Um dos principais shows foi, infelizmente, cancelado. Do Motörhead, na estrada desde 1975, com mais de quinze milhões de álbuns vendidos. Cujo frontman e símbolo é o carismático Lemmy Kilmister. Alcoólatra, que bebeu uma garrafa de Jack Daniels por dia, todo dia, por trinta anos. Suas palavras no documentário Live Fast, Die Old. Não adianta colocar uma camiseta do Motörhead e julgar o “pagodeiro cachaceiro” ou o “maconheiro do reggae”. De fato, Lemmy é a favor da total legalização das drogas. Inclusive das pesadíssimas, como a heroína. Longe da solução da guerra aos narcóticos.

Lemmy também figura, constantemente, em listas das maiores lendas sexuais do rock; teria feito sexo com mais de mil e duzentas mulheres. E outra banda que fechou o Monsters of Rock foi o Kiss, liderado por Gene Simmons e por Paul Stanley desde 1973. Cento e quarenta milhões de álbuns depois, temos dois roqueiros judeus fechando um festival de rock. Um diz que já dormiu com mais de duas mil mulheres. O outro é um deficiente físico com uma fundação para tratar de problemas faciais. Em um combo só, o roqueiro deveria aprender sobre antissemitismo, sobre interação com deficientes físicos e sobre o abandono de julgamentos moralistas sobre a vida sexual do outro. Se Gene Simmons e Lemmy podem transar com mais de três mil mulheres, dane-se o que sua vizinha “vagabunda” faz.

Uma das bandas não tão grandes que tocou no festival é o Unisonic, formado em 2009 e que dificilmente vendeu álbuns além da casa dos seis dígitos. Apesar da banda nova, dois de seus integrantes são pesos-pesados: Kai Hansen, fundador do Helloween e do Gamma Ray, e Michael Kiske, vocalista da formação clássica do Helloween e fundador do Unisonic. O Helloween foi formado em 1984 e já vendeu mais de cinco milhões de álbuns. E o motivo de eu falar do Unisonic? Michael Kiske queria fazer um som mais leve, especialmente no conteúdo. Um cristão convertido de uma denominação que no Brasil seria chamada de “evangélica”, Kiske não queria mais cantar sobre demônios, lendas nórdicas ou temas pesados.

No direito dele. E ninguém é obrigado à gostar de Unisonic, mas, se estamos falando de preconceitos e julgamentos morais, ninguém também deveria chamar Kiske de “crente maldito” ou termos piores por ter ido fazer o que sua consciência mandava. E também não se deve julgar os evangélicos brasileiros, assim como eles deveriam deixar quem gosta da “música do diabo” em paz. Existem diversas pessoas de diversas religiões no rock e no heavy metal. E a música pode ser, deve ser, uma ferramenta de crescimento também pessoal. Ajudar na derrubada de preconceitos. Nesse sentido, dada sua vastidão e o fato de serem estilos mundiais, o rock e o metal podem ser excelentes fontes. Apenas precisamos aprender as lições corretas, além do idioma inglês.

PS: A banda Manowar também tocou no Monsters of Rock, mas não falou-se dela pois você não conhece Manowar.

 


assinaturaFilipe Figueiredo, 29 anos, é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.


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