Cem anos de ingratidão

Vinte e quatro de abril é o Dia de Memória do Genocídio Armênio. O dia de hoje é ainda mais significativo, estamos no centenário do genocídio ocorrido em 1915, durante a Primeira Guerra Mundial. Entre seiscentos mil e um milhão e meio de armênios foram mortos; executados ou mortos após serem obrigados a marchar pelo deserto, sem alimento e sem água. Além disso, expulsões e migrações causaram a Diáspora Armênia, com cerca de sete milhões de pessoas etnicamente armênias vivendo espalhadas no mundo. O genocídio foi um dos primeiros extermínios feito com amparo de lei e do aparato estatal registrados e, mesmo um século depois, apenas vinte e quatro países reconhecem que um genocídio foi perpetrado.

Um desses países é a vítima, a Armênia, restando vinte e três países. Dois deles são membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, França e Rússia, e o primeiro país que reconheceu o genocídio foi o Uruguai, em 1965. A Rússia é também o país com maior comunidade armênia do mundo, oficialmente com um milhão e duzentos mil armênios; Putin estará presente nas cerimônias do Centenário. Essa não é a regra. Dos vinte países com maiores comunidades armênias, apenas sete reconhecem o genocídio. A segunda maior comunidade do mundo é a dos EUA, com entre quinhentos mil e um milhão de armênios. O Brasil é o vigésimo país em números da diáspora, com uma comunidade de cerca de cem mil pessoas da etnia armênia; até o momento, o país não reconhece o genocídio, apenas os estados de São Paulo, Ceará e Paraná.

O Azerbaijão, na ocasião parte do império russo, similarmente atacou sua população armênia, e o país também nega o genocídio. Além disso, o país e a Armênia tem um conflito fronteiriço atual, mas o cerne da ausência de reconhecimento é a vontade em não entrar em conflito com a Turquia, que nega veementemente o genocídio. Para o governo turco, sucessor do Império Turco-Otomano, os armênios morreram em decorrência da Primeira Guerra, já que os turcos estavam alinhados com as Potências Centrais e a Armênia estava ao lado da Rússia. Além disso, a violência teria sido de “mão dupla”, com mortes e massacres de turcos, em razão de conflitos étnicos.

Considerando que as mortes não teriam sido sistemáticas e decorrentes de uma política de Estado, na perspectiva turca, não se pode dizer em genocídio. Os chamados “Eventos de 1915” são parte importante da identidade nacional turca, fazendo parte do criticado artigo penal 301, que define crimes contra “a Nação turca”; interpretando, um turco que defenda o reconhecimento do genocídio pode ser processado criminalmente por ofender a memória da Turquia. Como demonstração de sua postura radical no tema, recentemente a Turquia convocou seu embaixador na Santa Sé em reação ao Papa Francisco usar o termo “genocídio” em uma missa em memória dos armênios mortos. A Armênia é um país cristão, com Igreja própria e onde estaria o templo cristão mais antigo do mundo.

Nesse contexto, ontem a Igreja armênia canonizou as vítimas do genocídio. A identidade cristã dos armênios colaborou muito para a adaptação dos imigrantes em países como os EUA ou o Brasil. Nos dois países as comunidades armênias são conhecidas e de grande colaboração cultural e intelectual nas sociedades. A comunidade armênia brasileira é concentrada em São Paulo, onde até uma estação de metrô recebe o nome do país; porém, dada as relações do Brasil com a Turquia, além da grande comunidade árabe no país, é difícil contemplar que, em curto prazo, o país reconheça o genocídio. A obrigação moral do reconhecimento do genocídio, entretanto, sobressai e já está atrasada na agenda presidencial por décadas.

No caso dos EUA, a incoerência e a cobrança são maiores. Além de uma comunidade maior, dos cinquenta estados dos EUA, quarenta e três, 86% das unidades federativas, reconhecem o genocídio em suas leis ou pronunciamentos internos. Mais ainda: o então Senador Barack Obama, em 2008, afirmou que o genocídio armênio não se trata de “opinião”, mas algo amplamente documentado, que conta com respaldo dos meios acadêmicos. Principalmente, disse: “Como Presidente, eu reconhecerei o Genocídio Armênio”. Algo que não ocorreu por sete anos em seu governo e dificilmente ocorrerá. Em extensa carta sobre o centenário do genocídio, Obama manobrou o vernáculo de todas as maneiras para condenar as ações turcas sem usar a palavra da discórdia.

Os EUA buscam fortalecer suas relações com a Turquia e dificilmente tomariam um curso de ação conflituoso nesse momento. O único país da OTAN no Oriente Médio se vê cada vez mais acuado nas negociações para ser parte da União Europeia (cuja Comissão de Direitos Humanos reconhece o genocídio). Os atuais conflitos na Síria e no Iraque envolvendo o Estado Islâmico e as crescentes tensões na Líbia fazem com que a Turquia seja imprescindível para a estabilização da região; embora, diga-se, não seja de muito boa-vontade, com receio de não fortalecer a demanda por um Curdistão independente, outra etnia historicamente oprimida pelos governos de Istambul. Os curdos foram parte do genocídio, como executores, mas reconhecem seu papel e já pediram perdão por seus atos.

Por mais pragmáticas que sejam as relações internacionais e de geopolítica, a Turquia nega a execução do genocídio, em boa parte, por orgulho nacional. Orgulho no sentido pejorativo, de não querer reconhecer um erro. Respaldar esse comportamento pode ser explicado, mas não é louvável, ainda mais considerando o tamanho e a importância das comunidades armênias em diversos países, como o Brasil e os EUA. Reconhecer o genocídio vai além da questão histórica, das lições da História; supostamente, Hitler teria dito que “ninguém se lembra” dos armênios, o que respaldaria as ações genocidas do III Reich. A frase estampa o pórtico do Museu do Holocausto em Washington, como lembrete da importância da memória. O reconhecimento do genocídio pelos EUA e pelo Brasil é também uma dívida de gratidão para com suas comunidades armênias.

 


assinaturaFilipe Figueiredo, 29 anos, é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.


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