Antropofagia de tradições e o bacalhau de sexta-feira

Caros leitores, peço desculpa pelas duas últimas semanas, em que o blog não foi atualizado diariamente; muito trabalho, inclusive relacionado ao blog.
Véspera de Páscoa, especificamente, véspera de Sexta-feira Santa para os cristãos, a maior prática religiosa no Brasil, em suas variadas denominações. Pauta típica, todo ano, em qualquer veículo de mídia, na internet, na televisão: o preço e a demanda do bacalhau, considerado prato típico da ocasião. Sempre acompanhado de algum comentário sobre a pesca, sobre a vida marinha, ou sobre a inflação, comentários sobre o governo e uma senhora de idade comentando sua receita. A tradição do consumo de bacalhau justifica ele ser utilizado como um verdadeiro termômetro da economia no período?
O bacalhau, e suas diversas formas de consumo, é um típico prato português. Sua presença na cultura e na gastronomia brasileira, então, é explicada quase que automaticamente, uma das heranças históricas da colonização do atual Brasil. Em famílias de ascendência ibérica recente, com portugueses e espanhóis que migraram para o Brasil da década de 1930 em diante, o bacalhau é ainda mais presente. Assim como diversos ingredientes e iguarias da região do Mediterrâneo que não são nativas do Brasil, como azeitonas e o azeite de oliva.
O que lembra: o bacalhau não é um peixe nativo do Brasil ou do Atlântico Sul e suas águas quentes. O bacalhau é um peixe das geladas águas do Atlântico Norte, da costa ocidental da Europa, do Mar do Norte escandinavo; mais recentemente, da América do Norte e da Groenlândia. A exploração portuguesa do bacalhau é histórica, remete à Idade Média e as primeiras navegações comerciais portuguesas, até o Mar do Norte; de fato, o bacalhau salgado em conversa foi elemento essencial nas grandes navegações lusitanas. A força da tradição e da presença do bacalhau na cultura portuguesa é enorme.

Em azul, destacadas as regiões de exploração do bacalhau tradicional, espécie Gadus morhua, também conhecido como Bacalhau do Porto. Outras espécies de bacalhau também são da região. As alternativas mais baratas são da categoria chamada de “bacalhau chinês”; diversas espécies processadas de maneira que imita o bacalhau português.
Essa força, entretanto, não deveria simplesmente ser assimilada de forma passiva na sociedade brasileira, esse é o ponto aqui. Uma abordagem similar já foi feita no Xadrez Verbal, ao tratar do Halloween. É interessante lembrar-se da Antropofagia de Oswald de Andrade; na cultura brasileira, um país formado pela mistura, não se deve criar a sensação de uma cultura legitimamente nacional, pura. Também não se deve simplesmente aceitar o estrangeirismo, a moda importada, e tomá-la como a regra. Os diversos elementos culturais devem ser devorados e “deglutidos”, sem imitações.
Portugal, especialmente comparado ao restante da Europa, historicamente, é uma nação pobre. Sua imensa maioria católica tinha no bacalhau o prato principal de suas datas religiosas justamente pelo seu fácil acesso: abundância no mercado e valor acessível. Exatamente o oposto da situação do bacalhau no Brasil atual, ao ponto da ironia. Primeiro, o bacalhau sofreu grandes quedas populacionais, dada a pesca em larga escala, o que aumenta seu preço. Segundo, repete-se: o bacalhau é um produto importado, pois não é nativo do Brasil. De fato, o Brasil é um dos maiores consumidores de bacalhau norueguês do mundo; contribui o fato da indústria pesqueira brasileira ser muito pouco competitiva.
Uma possível interpretação da antropofagia relacionada à tradição é o consumo do piracuru do rio Amazonas; vendido, ás vezes, sob o marketing de “bacalhau da Amazônia”, e não necessariamente com seu nome indígena. E, claro, não se trata de julgar pessoas que mantenham a tradição de consumir bacalhau na ocasião, de acordo com sua prática religiosa. O que deve ser contestado é o tamanho da importância que é atribuída ao peixe, usado como um termômetro econômico ou caracterizado como obrigatório para a ocasião. O Brasil é resultado da colonização americana pelo país do bacalhau, mas não é, nem precisa ser, também o país do bacalhau. Especialmente considerando que ele não existe no país. Talvez permita pautas jornalísticas mais diversas também.
Ps: A foto que ilustra esse post não é desse autor; é de Juliana Palma, do blog Facada.
Filipe Figueiredo, 29 anos, é tradutor, estudante, leciona e (ir)responsável pelo Xadrez Verbal. Graduado em História pela Universidade de São Paulo, sem a pretensão de se rotular como historiador. Interessado em política, atualidades, esportes, comida, música e Batman.
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Minha mãe diz que quando ela era pequena, bacalhau era comida de baixo custo. Era alternativa a carne bovina e suina, que como não existiam geladeiras, tinham que ser consumidas rapidamente, enquanto o bacalhau salgado durava muito tempo.
Ficou caro depois que gourmetizaram ele, o que mostra que o fenômeno da gourmetização é antigo! rsrsrs
Peguei no site abaixo http://www.bacalhau.com.br/historia.htm essas frases:
“Durante muitos anos o bacalhau foi um alimento barato, sempre presente nas mesas das camadas populares. Era comum nas casas brasileiras o bacalhau servido às sextas-feiras, dias santos e festas familiares.
Após a 2ª Guerra Mundial, com a escassez de alimentos em toda a Europa, o preço do bacalhau aumentou, restringindo o consumo popular. Ao longo dos anos foi mudando o perfil do consumidor do bacalhau, e o consumo popular do peixe se concentrou, principalmente, nas principais festas cristãs: a Páscoa e o Natal.”