Por um outro olhar: política, pichação, Michel Foucault e a filosofia cínica

– por João Felipe Rebelo Goto

Agora o Xadrez Verbal terá conteúdo novo todo dia, leia mais no editorial sobre esse importante passo no blog.

                Caros leitores, este texto é muito especial para mim, pois inaugura a minha colaboração para o blog Xadrez Verbal. Dessa forma, para marcar a estreia neste espaço, gostaria de discutir um tema extremamente polêmico e controverso presente na agenda política das grandes cidades brasileiras – o fenômeno da pichação. Para tal, partiremos de algumas ideias traçadas pelo filósofo francês Michel Foucault acerca da filosofia cínica expostas em A coragem da verdade, seu último curso proferido no Collège de France poucos meses antes da sua morte, em 1984.

foucault

          Contudo, antes de começar, uma ressalva se faz necessária. Em nenhum momento, este texto pretende ser acadêmico, decifrar uma verdade ou julgar se a pichação é ou não é correta. A intenção aqui é somente instigar um outro olhar para algo que está presente no cotidiano das metrópoles e que, pela ausência de um pensamento crítico mais qualificado, dificilmente é discutido em toda a sua complexidade. Mas vamos ao que interessa.

            Apesar das primeiras pichações no Brasil começarem como uma forma de protesto à Ditadura Militar nas décadas de 1960 e 1970, foi somente em meados dos anos 1980 que jovens da periferia de São Paulo, inspirados nas formas das letras presentes nas capas de discos de rock da época, desenvolveram um estilo único de expressão e passaram a registrá-lo nas paredes da cidade, dando início ao fenômeno da pichação.

            Mais do que uma mera diversão de jovens da periferia, a pichação configurou-se, no decorrer das últimas duas décadas, como um modo de vida baseado no enfrentamento das regras instituídas pela nossa sociedade, com destaque àquelas relacionadas à defesa da propriedade. Nesse sentido, a intenção aqui é aproximar esse modo de vida do pichador com aquilo que Foucault chamou de vida de artista, cuja emergência se dá durante o desenvolvimento da arte moderna, no século XIX. Antes de continuar, entretanto, é preciso fazer uma rápida digressão sobre como o pensador francês chega a essa questão.

Logo da banda de heavy-metal Iron Maiden.

Logo da banda de heavy-metal Iron Maiden.

 

            Ao longo do seu último curso ministrado no Collège de France, Foucault procura resgatar a filosofia cínica da Antiguidade, sobretudo o pensamento e a vida de Diógenes de Sinope (também conhecido como Diógenes, o Cínico), como fonte de uma potente crítica visceral, uma vez que expressa um dizer a verdade corajoso contra as regras e normas estabelecidas e tidas como inquestionáveis, a partir de um estilo de vida baseado num extremo desapego e numa constante preocupação com si mesmo (“ser senhor de si” / “cuidar de si”).

            Para Foucault, esse cinismo antigo foi capturado e reapropriado em três momentos distintos da história do Ocidente: na vida ascética de alguns movimentos espirituais que povoaram a Idade Média europeia, na vida revolucionária do século XIX e na arte moderna também do século XIX. Por questões de espaço, ficarei apenas na questão da arte moderna.

Logo da banda de thrash-metal Slayer.

Logo da banda de thrash-metal Slayer.

 

            O pensador francês enxerga a crítica cínica na arte moderna a partir de dois aspectos: em primeiro lugar, por meio da emergência da vida de artista como uma vida que não se encaixa às regras ordinárias da sociedade e que busca constituir o testemunho da sua arte em sua própria vida; e, em segundo lugar, através do caráter anticultural da própria arte moderna, cujo objetivo é desestabilizar as normas, valores e cânones estéticos estabelecidos.

            Aqui, a aproximação entre a pichação e a filosofia cínica invocada por Foucault começa a ganhar contornos mais nítidos. Assim como a vida de artista não se enquadra nas regras ordinárias da sociedade, a vida de pichador também não se encaixa, já que os pichadores transgridem constantemente as regras sociais, são capazes de arriscar as suas próprias vidas para registrarem algumas letras nas mais diferentes superfícies da cidade e não buscam nenhum tipo de reconhecimento ou aceitação pelos teóricos da arte ou pela sociedade em geral. Além disso, a própria pichação, comumente relacionada à sujeira, ao abandono e à degradação de uma região urbana, é uma afronta direta às normas sociais e aos cânones estéticos em voga.

Folhinha de pichador. Crédito: Digvagos

Folhinha de pichador. Crédito: Digvagos

 

            Entretanto, talvez a crítica mais contundente que esse modo de vida do pichador expressa diz respeito à questão do direito à propriedade das sociedades modernas. Considerado um direito “inviolável e sagrado” pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1791), sem dúvida, um dos documentos mais importantes do nosso atual período histórico, a pichação coloca em xeque algumas das maiores verdades da nossa atual vida urbana ao questionar “a quem pertence a cidade”. Expandindo esse problema, outras perguntas podem ser feitas, como “quais são as possibilidades de interação desses jovens da periferia com a cidade? Quais são as possibilidades desses jovens serem verdadeiramente vistos e aceitos pelos demais transeuntes da cidade? Quais são as possibilidades desses jovens não deixarem suas vidas passarem ‘em branco’, ou seja, sem algum tipo de contribuição para a construção da cidade na qual também habitam?”.

            Portanto, mais do que um simples vandalismo ou um mal social a ser combatido por políticas públicas, a pichação pode ser compreendida como uma forma de crítica cínica às regras sociais estabelecidas responsáveis por impor padrões estéticos e modos de interação com a cidade à margem de uma efetiva discussão e colaboração popular.

Para saber mais

FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

CHAVES, Ernani. Michel Foucault e a verdade cínica. Campinas: Editora PHI, 2013.

SEIXAS, Rogério Luis da Rocha. “A parrhesia cínica e a verdade como escândalo”. In: Revista Filosofia.São Paulo, ano VII, n. 92, março de 2014.

PIXO. Direção: João Wainer, Roberto T. Oliveira. São Paulo: Sindicato Paralelo Filmes, 2011. Disponível no Youtube

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gotoJoão Goto é torcedor do Santos, professor de História da Prefeitura de São Paulo e mestrando em Educação. Mantém o blog Professor João Goto  para seus alunos e pode ser contatado pelo email goto.joao@gmail.com Textos de autoria de João Goto. 

 

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7 Comentários

  • Goto, gostei da analogia “cínica”. De fato, os pichadores não se preocupam muito com o que a “sociedade” pensa deles (ainda que adorem afrontá-la, no que fazem muito bem), mas existe uma busca pelo reconhecimento dos pares, seus colegas pichadores da outras “famílias” e “marcas”. Seria possível levar além a analogia com a arte do XIX e início do XX, e fazer um paralelo destes diferentes grupos com os movimentos e coletivos artísticos?

    • Grande, Luis! Obrigado pela leitura! Você pensa em algum movimento ou coletivo artístico em específico? Não sou um grande conhecedor das artes, mas não consigo lembrar-me de nenhum que se aproxime da pichação. Na minha opinião, apesar do picho ser uma comunicação fechada, os efeitos dela para a sociedade são muito cínicos. E o que dá lastro a essa crítica cínica é o próprio modo de vida do pichador, uma vida normalmente formada nas inúmeras adversidades existentes nas regiões periféricas e que é colocada constantemente em risco nas inúmeras escaladas dos rolês. Além disso, em nenhum momento o pichador quer ser reconhecido como artista ou institucionalizar a sua criação. O picho só existe porque é ilegal e afronta as regras. A partir do momento em que ele for aceito e normalizado, ele perderá a sua razão de ser. Consegui responder a sua questão? Um abraço!

  • Republicou isso em História e Históriase comentado:
    AlunXs e AlunXs,
    O blog de um amigo meu acabou de publicar um texto de minha autoria. Quem se interessar pelo tema das artes e da cidade em que vive, recomendo a leitura!
    Bons estudos!

  • Pingback: Resumo da Semana – 31/08 a 06/09 | Xadrez Verbal

  • Gostei das logos do Iron Maiden e Slayer. Up the Metals!!

  • Muito interessante, e muito bem escrito. Gostei de aprender esse novo ponto de vista. Boa!

  • Olá João, muito bom texto. Sei que o espaço é curto para desenvolver ideias, e, que, você quis emergir um tema para outros desdobramentos. Mas, se puder, seria bom um novo desdobramento com uma investigação processual. O que quero dizer com isso? Desenvolver o tema com a discriminação dos vários tipos de pichadores que temos. Acredito que tenha o dito “pichador sínico”, existe o que se preocupa com a arte e aquele que simplesmente não sabe o que está fazendo, e o faz envolvido por momentos e circunstâncias adversas em detrimento de seu convívio e valores. Abraços, amigo. Continue escrevendo trazendo à lume proposições que nos levem a pensar.

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