Brasil, Itamaraty e racismo

“O Itamaraty é uma das instituições mais discriminatórias do Brasil.”

A frase acima é do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, em entrevista ao jornal O Globo no dia 28 de Julho.

Ela está certa, sim, e também está errada.

Certa, pois, sabe quem foi o primeiro embaixador negro do Brasil? Raimundo Sousa Dantas, nomeado embaixador no Gana em 1961 (posteriormente também seria embaixador na Argentina), foi um jornalista e escritor nomeado por Jânio Quadros. Note que não inclui “diplomata” como seus ofícios até sua nomeação; foi escolhido como primeiro embaixador negro, para simbolizar o apoio brasileiro à África e sua luta contra o colonialismo no contexto da Política Externa Independente, pois não havia diplomatas negros de carreira. O primeiro embaixador negro de carreira foi Benedicto Fonseca Filho, apenas em 2011. É inegável uma deficiência histórica do Itamaraty em ter diplomatas negros.

Errada, por dois aspectos. O primeiro é o uso do verbo no presente do indicativo. O Itamaraty foi das primeiras instituições estatais no Brasil a reconhecer essa deficiência história. Criou, em 2002, o Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco – Bolsa Prêmio de Vocação para a Diplomacia, que financia os estudos de candidatos afrodescendentes. Em 2011, também passou a reservar parte das vagas na primeira fase do concurso de admissão aos candidatos afrodescendentes. Além disso, Joaquim Barbosa afirma ter sido eliminado na entrevista, que existiria supostamente para “eliminar indesejados”; opiniões pessoais à parte, tal mecanismo de seleção não existe mais. Muito se deve às iniciativas pessoais do Chanceler Celso Amorim, hoje Ministro da Defesa. Mas é injusto afirmar que o Itamaraty ainda seja das “instituições mais discriminatórias”.

Outro aspecto que torna a afirmação de Barbosa errada é que a história institucional brasileira é discriminatória. Todas. O Exército, que por mais de um século foi virtualmente o único meio de ascensão social no Brasil, teve seu primeiro general negro apenas em 1955. O histórico racial na Marinha do Brasil estará ligado, negativamente, a João Cândido e sua revolta. A Aeronáutica, considerada por alguns a mais progressista das três armas, teve oficiais-generais negros apenas no fim da década de 1990, e a primeira a ter um comandante nipo-brasileiro, o brigadeiro Juniti Saito. Oficiais-generais indígenas? Não há. O próprio Joaquim Barbosa foi o primeiro ministro negro do STF, em 2003. Mesmo se abrangermos além das instituições de Estado e procurarmos nos cargos públicos, não existem muitos exemplos. No Senado, apenas Benedita da Silva e Marina Silva foram eleitas em sufrágio universal (Correção: Paulo Paim, senador pelo RS, também foi eleito em sufrágio universal). Abdias do Nascimento, famoso por sua defesa dos cultos afro-brasileiros, assumiu como suplente. O único prefeito de São Paulo negro e eleito foi Celso Pitta (o outro foi Paulo Lauro, em 1947, indicado), o que exemplifica os poucos políticos negros no Brasil.

Voltando ao início da República, temos outros dois exemplos. Eduardo Ribeiro, primeiro governador negro, que governou o Amazonas de 1892 a 1896, no início da expansão da indústria da borracha, e Francisco Glicério, que ocupou ministérios e foi senador durante a República Velha (ou seja, sem sufrágio universal). Mas notem que, em mais de cem anos, temos um parco parágrafo de exemplos. É esse contexto que torna a afirmação de Joaquim Barbosa incompleta. A discriminação nas instituições do Estado brasileiro não se resumia ao Itamaraty. Como o próprio Supremo Tribunal Federal definiu, em raríssima decisão unânime sobre a constitucionalidade das cotas nas universidades federais, no Brasil existe uma “discriminação étnica estrutural – embora não inscrita nas leis-, que as universidades públicas têm o direito constitucional de combater.” O acesso amplo à educação, às carreiras públicas e a pressão da opinião, pública e dentro do Estado, poderão mudar esse cenário. Até lá, não existe uma instituição pública que seja mais discriminatória no Brasil. Historicamente, todas são.

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5 Comentários

  • Sempre comento seus posts. Joaquim Barbosa foi precedido de Hermenegildo de Barros e Pedro Lessa que eram mulatos e mineiros como ele. No próprio site do STF fala que Hermenegildo foi o primeiro negro a ser Ministro do STF, pois Pedro Lessa era mulato claro. E a historiadora Lêda Boechat confirma a tese, dentro do ponto de vista antropológico. Mas acho um erro enorme o negro quando não consegue alguma coisa, já de cara dizer que não conseguiu por culpa do racismo. Não sei se você concorda comigo. Racismo que é grave, é desculpa pra tudo algumas vezes. Eu não passei no concurso do Instituto Rio Branco e não coloquei a culpa em ninguém a não ser em mim mesmo, que sabia da grande dificuldade das provas.

    • Caro Gustavo, obrigado pela confiança e pela assiduidade. Quanto aos ministros do STF, acredito que mulato não é o mesmo que negro, embora, claro, seja uma linha tênue. O próprio Barbosa, antes de ser confirmado, afirmou “Posso vir a ser o primeiro ministro reconhecidamente negro”. Sobre a parte do racismo, discordo; nossa sociedade, infelizmente, ainda sofre de um racismo estrutural. Acredito que a decisão unânime do STF sobre o assunto tem um valor muito forte, prático e simbólico, nesse sentido. Um abraço.

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