Quantos palestinos de Gaza apoiam o Hamas?

Este texto foi originalmente publicado como uma thread no Twitter/X e é reproduzido aqui para facilitar o acesso aos que não possuem perfil naquela rede social.

Parte do discurso que busca justificar os ataques aéreos israelenses contra Gaza é baseado na premissa de que toda, ou a maioria, da população do território apoia o Hamas.

Só que isso não é verdade.

Talvez a declaração nesse sentido que mais repercutiu foi a do então ministro, Amichai Eliyahu, que disse que “não existe isso de civis não envolvidos em Gaza”.

Na mesma entrevista, ele sugeriu o uso de uma bomba nuclear em Gaza e, por isso, foi afastado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu no último domingo.

Ele, entretanto, não foi a única figura no debate público que falou algo semelhante, seja em Israel, seja nos EUA. Por exemplo, outra foi a parlamentar e ex-ministra Galit Distel-Atbaryan.

Principalmente, muitas pessoas podem não dizer, mas podem pensar exatamente isso: que todo habitante de Gaza é um integrante, apoiador ou simpatizante do Hamas. 

Devido à violência dos atos terroristas do Hamas no último dia 7 de outubro, esse discurso contribui para justificar a desumanização dos palestinos. Se seriam todos apoiadores do Hamas, então, são todos uns “animais humanos” também, expressão usada pelo ministro da Defesa Yoav Gallant para se referir aos integrantes do Hamas. 

O primeiro argumento contra isso é o formal. Segundo as estimativas dos EUA, em 2022 o Hamas tinha entre 20 e 25 mil integrantes. Já para as forças armadas de Israel, em 2021, o grupo tinha cerca de 40 mil integrantes, somando o partido e seu braço armado, as Brigadas al-Qassam.

Ou seja, mesmo que queiramos considerar essas estimativas totalmente fora da realidade e, por exemplo, dobrar esses números, ainda trata-se de uma fração da população total de 2,3 milhões de pessoas da Faixa de Gaza, um dos locais mais densamente povoados do mundo.

Claro que esse é um argumento formal, ou seja, de integrantes formais do grupo. Muitas pessoas vão dizer que a “prova” de que população de Gaza é simpatizante ao Hamas é o fato do partido ter vencido ali as eleições de 2006.

Entramos no segundo argumento: essa vitória eleitoral não quer dizer apoio geral ao Hamas, muito menos hoje. É pueril como dizer que o fato de Lula ter vencido as eleições presidenciais brasileiras faz da população inteira uma simpatizante do Partido dos Trabalhadores.

No total nacional, o Hamas teve 44,45% dos votos, o Fatah teve 41,43% e outras chapas e candidatos independentes tiveram 14,12% dos votos. O comparecimento eleitoral foi de 76% do eleitorado. Ou seja, foi uma eleição apertada em que o Hamas não teve a maioria dos votos.

Olhando o mapa oficial dos resultados, vemos que, dos cinco distritos da Faixa de Gaza, o Hamas não teve a maioria dos votos em três deles. No distrito da cidade de Gaza, onde teve sua mais expressiva vitória, o partido teve cerca de 57% dos votos, e os resultados estão salvos aqui.

A ideia de que o Hamas teve uma vitória esmagadora vem do fato do grupo ter tido menos candidatos, concentrando seus votos e elegendo mais deputados. Notem que em dois dos distritos de Gaza onde o Hamas teve menos votos que o Fatah eles elegeram mais deputados.

Quem acompanha o podcast do Xadrez Verbal sabe que as eleições têm essas distorções e o parlamentarismo por vezes proporciona o “ganhou, mas não levou”. Para quem quiser uma leitura mais aprofundada sobre a proporcionalidade do voto em 2006, sugiro este texto.

Além disso, por uma série de razões, hoje, 70% da população da Faixa de Gaza tem menos de 30 anos de idade. Ou seja, não tinha idade para votar em 2006.

Em suma, a eleição de 2006 não diz nada sobre o apoio ou não ao Hamas da população civil de Gaza. Então, como saber o que a atual população de Gaza pensa do Hamas? Podemos citar dois think tanks. Um deles é o Palestinian Center for Policy and Survey Research, baseado em Ramallah, que publica o Arab Barometer, financiado em parte com contribuições do governo dos EUA

Apenas 29% da população de Gaza afirmou que “confia” ou “confia bastante” no Hamas, com 44% dizendo que “não confiam”. Importante dizer que a confiança no Fatah também é baixa, mas Marwan Barghouti, líder do Fatah atualmente preso em Israel, seria o mais bem votado em Gaza. Em outra pesquisa da mesma fonte, 51% da população de Gaza disse apoiar a luta armada, sem especificar sob qual liderança ou quais moldes.

Concluindo, não é possível dizer que não existem “civis não envolvidos” em Gaza, como disse o ex-ministro israelense e como pensam muitos. Isso é reducionista e, repito, contribui para justificar crimes de guerra e punições coletivas, desumanizando os palestinos

Lembrando que na edição #354 do podcast Xadrez Verbal contamos com a professora Rashmi Singh, que apresentou uma verdadeira aula sobre o Hamas e suas várias dimensões, um tópico habitual aqui no Xadrez Verbal e que não se esgota em uma thread. Também temos um podcast sobre Direito Humanitário, com doutor Jeff Nascimento.

Como sempre, eu, Filipe, agradeço a confiança no meu trabalho. Se achou a thread interessante, compartilhe.

(Fim da thread)

3 Comentários

  • Pingback: Xadrez Verbal Podcast #356 – Idos de Novembro | Xadrez Verbal

  • Acho que também seria válido um texto “recíproco” sobre quanto israelenses apoiam Nethanyahu. Afinal, se tem um grupo com poder para parar a ação dele é a própria sociedade israelense.

  • A guerra sempre vai ser uma coisa ruim para todos, mas foi muito justo afastar Amichay, pois uma bomba nucléar alem de causar uma enorme destruição iria matar muitos inocentes. E lembrando que essa guerra ja vem acontecendo a muito tempo, e ja morreram muitos inocentes e a faixa de gasa e uma das áreas mais afetadas alem do seguestro de pessoas, e ate brasileiros que moravam la, por terroristas que aproveitam essa revolução para fazer vitimas, então medidas tem que ser tomada para que isso chegue ao fim e a paz reine no mundo.

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