A reforma eleitoral que realmente poderia ajudar o Brasil

Agosto de 2021 e a Câmara dos Deputados brasileira discute uma “minirreforma eleitoral” que instauraria o modelo do “distritão” para a eleição de deputados no Brasil. Um modelo péssimo e retrógrado. Não só na opinião deste texto, mas também, por exemplo, segundo o cientista político Cláudio Couto, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), ouvido por Luiz Felipe Barbiéri, do G1 em Brasília.

“O distritão é o pior sistema eleitoral imaginável. Primeiro, porque destrói os partidos políticos, tudo passa a depender muito mais da votação em indivíduos e não na votação em partidos. [Segundo, porque] o debate de ideias também é prejudicado em função disso”. 

Caso você queira entender melhor do que se trata esse “distritão”, a matéria do citado Barbiéri é bem completa e estará linkada ao final deste texto, para não atrapalhar sua leitura.  

O ponto é que o “distritão” é tapar o sol com a peneira, o problema da Câmara dos Deputados é outro. É a falta de representatividade da população.

Não há modelo que dê conta de uma estrutura em que o voto de uma pessoa valha quase nove vezes o voto de outra. E isso não é uma hipérbole. 

O sistema representativo nacional é uma colcha de retalhos, e meio mal costurada. A Câmara de Deputados brasileira possui um piso e um teto de representantes de um mesmo estado, oito e setenta, respectivamente. 

Isso quer dizer que Roraima, com seus cerca de 600 mil habitantes, ao eleger oito deputados, cada um deles representa, de grosso modo, 75 mil pessoas. Já São Paulo, com 45 milhões de habitantes, elege setenta deputados. Cada um deles representa, de grosso modo, 642 mil pessoas.

E isso é escrito com todo o respeito pelos compatriotas roraimenses e longe de qualquer discurso de superioridade pró-São Paulo, pró-sudeste, o que for. É a constatação de um profundo desequilíbrio na representação federalista brasileira, que gera mais problemas do que a primeira vista pode denunciar. 

No modelo federalista dos EUA, por exemplo, cada estado possui o mínimo de um deputado e não há teto. Isso quer dizer que o Alasca, com 710 mil habitantes, elege um deputado, enquanto a Califórnia, com 37 milhões de habitantes, elege 53 deputados. Lembrando que tais cálculos podem ser feitos tanto baseados em habitantes quanto em eleitores, que são parâmetros diferentes.  

É claro que pequenas distorções vão ocorrer em qualquer sistema, mas nada na casa de quase nove vezes o número como no exemplo brasileiro.

Essa distorção na Câmara tem origem no infame Pacotão de Abril de 1977, quando Ernesto Geisel fechou o Congresso, que dava falso verniz de debate público, e, na caneta, mudou a composição do legislativo brasileiro. A justificativa foi a de que, como o “poder econômico” estaria centrado no sul e sudeste, seria justo dar maior representação política ao norte e ao centro-oeste.

No fundo, a manobra foi feita para diminuir a influência do MDB de então, aumentando a representatividade de regiões pró-ARENA. O sistema distorcido foi mantido pelas pessoas eleitas por essa mesma distorção na década de 1980 e está aí até hoje. A versão política do lema “onde a ARENA vai mal, mais um time no nacional”.

Isso implica no fato de que uma parcela enorme da Câmara dos Deputados não precisa se empenhar da mesma maneira para atender ao eleitorado que deveria representar. Alguns sequer representam um eleitorado direito. Você conhece o deputado Pastor Manuel Marcos, do Acre? Sabe como ele vota na Câmara? Ele foi eleito com menos de oito mil votos, em um universo de mais de meio milhão de eleitores acreanos. 

Existe toda uma bancada na Câmara dos Deputados que praticamente não precisa se responsabilizar perante o eleitorado, mais suscetíveis a votos movidos por promessas de emendas, de cargos, do que for.  

Ao mesmo tempo, um sistema de representação distrital puro, como nos EUA, transforma o congressista numa espécie de “zelador distrital”, um político focado única e exclusivamente em medidas benéficas para seu distrito, negligenciando questões nacionais ou mais amplas.

O Xadrez Verbal iniciou como um blog pessoal, mas o nome ganhou alguma visibilidade como um podcast de política internacional. E uma das coisas que sempre é dita no podcast sobre o valor de acompanhar a política em outros países é que podemos aprender e absorver questões interessantes para o Brasil

Nesse caso, o sistema de eleição para o parlamento da Alemanha, um país também federal e também multipartidário, como o Brasil. Lá é usado um sistema de representação proporcional mista. Isso quer dizer que uma parte do parlamento é eleita pelo voto distrital e outra parte é eleita por uma lista nacional. 

Esse modelo permite ao eleitor eleger um representante da sua região e também um representante nacional. Por exemplo, um eleitor que se identifique de direita pode votar no seu vizinho, que é um cara muito legal e saiu pelo partido Centrão, e também votar na lista nacional de direita. Um exemplo bobo e simples, mas funcional. Pode votar em ótimo administrador para seu distrito e também um voto nacional que seja mais ideológico. 

Os votos nacionais também são relacionados aos votos distritais para manter uma importante proporção partidária. Isso evita que o voto em um deputado que perca sua eleição seja “jogado no lixo”, mantendo representação. 

“Poxa Filipe, gosto muito de seus textos, mas isso não causaria uma concentração de representação nos estados mais populosos, como São Paulo?”. É para isso que existe o sistema bicameral, com a câmara baixa representando a população e a câmara alta representando as entidades da federação. Se a maior parte da população está localizada em um estado, oras, ela deve ser representada mesmo assim. 

Já no Senado, cada estado possui três cadeiras. Ponto final, são todos iguais. Os compatriotas de Roraima, do Acre ou do Rio Grande Sul continuariam representados, mesmo que com menos deputados. Atualmente, a população da maioria dos estados está super-representada, enquanto as populações de Santa Catarina, São Paulo, Rio Grande do Norte, Ceará, Pará e Amazonas estão sub-representadas.

O caso mais gritante é o de São Paulo. Em um modelo distrital como o dos EUA, o estado, que hoje possui 70 deputados, deveria ter 111. Roraima deveria ter um, Amapá e Acre deveriam ter dois. Atualmente possuem oito. O Rio Grande do Sul, com 31 deputados, deveria ter 28. No sistema alemão, entretanto, a proporção seria um pouco diferente.

O ponto aqui é: seja distritão, distrital misto, método D’Hondt, lista fechada, o caramba que for, uma democracia necessita de representatividade da população. E isso não existe no Brasil. Se o desejado é um representante que dialogue com a população e seja responsabilizado por suas escolhas, estabelecer uma proporção justa deveria ser a prioridade. Infelizmente, isso dificilmente ocorrerá, já que os que deveriam fazer isso são, em parte, os que poderiam ficar sem alguma boquinha.

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A matéria citada no G1 sobre o distritão, completa e acessível.

Fiz, em 2015, um exercício de imaginação sobre como seria a Câmara dos Deputados brasileira de acordo com a proporção dos EUA, caso queira ver.

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Filipe Figueiredo é professor de História, fundador do site Xadrez Verbal e de seus podcasts, integrante do canal Nerdologia e colunista do jornal Gazeta do Povo, além de ter passado por outros veículos.

2 Comentários

  • Muito interessante o texto!!

  • Olá, me chamo Gustavo e há algum tempo acompanho o Xadrez Verbal diariamente nos meus deslocamentos. Acredito que um vício dos brasileiros (e talvez dos cidadãos das democracias contemporâneas) é esse excessivo institucionalismo, que verifico com frequência na faculdade de Direito onde estudo. Parece que todo e qualquer problema pode e deve ser resolvido a partir de uma reforma institucional. Embora elas pareçam imprescindíveis, creio que muitas vezes elas sejam resultados de algo mais embrionário – as associações civis. As pessoas são muito pouco associadas, desconfiam de associações o que fragiliza nossa democracia, que então segue sendo, em verdade, oligarquia. Segunda coisa, no meu entendimento precisamos de MAIS federalismo, porque isso aproxima o cidadão do governante, inclusive geograficamente, não menos.

    Grande abraço

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