Cessar-fogo em Artsakh / Nagorno-Karabakh

Este texto foi originalmente publicado como uma thread no Twitter/X e é reproduzido aqui para facilitar o acesso aos que não possuem perfil naquela rede social.

Hoje, dia 20 de setembro, foi mediado pela Rússia um cessar-fogo entre os representantes armênios da região de Nagorno-Karabakh e os da ditadura do Azerbaijão.

A região de NK será “desmilitarizada”, com a dissolução das forças armênias locais de Artsakh, chamadas de “grupos terroristas” pelo Azerbaijão e a remoção de “armamento pesado”, provável referência a armamentos do exército regular armênio.

Milhares de armênios já se aglomeram em alguns pontos de saída da região, como no aeroporto de Stepanakert, controlado pelas forças russas.

Amanhã teremos uma reunião para, supostamente, coordenar a “reintegração” da região ao Azerbaijão.

Na prática, Artsakh se rendeu, por dois motivos.

Primeiro motivo: A República da Armênia, governada pelo premiê Nikol Pashinyan, afirmou que não iria se envolver. Pashinyan, mais de uma vez, reafirmou que NK é território do Azerbaijão, a posição internacional. Já expliquei brevemente esta situação em alguns materiais. Se você desejar, pode ler este texto meu ou assistir este breve vídeo roteirizado por mim:

Segundo motivo da rendição: a comunidade internacional pouco ou nada se mobilizou. Mesmo os contatos com os EUA foram no sentido de desmobilização (isso é informação, não é palpite).

Na comunidade internacional se “destaca” a posição russa, cujas forças de paz teriam protegido os civis – Na prática, Putin deu as bênçãos para a operação “anti-terrorismo” do Azerbaijão, iniciada ontem e repercutida nesta thread (vou reproduzir esta outra thread aqui no site em breve). Além do que coloquei naquela thread, hoje o veículo opositor a Putin Medusa publicou que o governo russo orientou que o “Ocidente” fosse culpado pelo revés armênio. Crédito da informação é do gigante Heitor Loureiro.

Como o mesmo Heitor lembra, amanhã é dia da independência da Armênia, o que dá um tom ainda mais derrotista à reunião prevista.

O governo do Azerbaijão vai propor a “reintegração” com a adoção de nacionalidade azerbaijana e falam “armênios azerbaijanos”.

Existem duas “pegadinhas”:

1, o governo do Azerbaijão também exigiu a rendição e “extradição” de uma série de nomes, lideranças armênias de NK que acusa de terrorismo e outros crimes.

2, embora a ditadura Aliyev goste de vender a imagem de um país multiétnico, na prática o Azerbaijão é um Estado dominado por uma maioria de 96% de azerbaijanos étnicos. Existe uma minoria substancial de lezguianos, um povo nativo do Daguestão, mais ao norte, e outras minorias, como uma pequena comunidade judaica.

Na Armênia, 98% da população é etnicamente armênia e, na prática, por uma série de razões, é impossível armênios viverem no Azerbaijão e vice-versa.

Caso célebre é do mestre enxadrista Kasparov, que nasceu em Baku, capital azerbaijana, mas é russo de família armênia, que teve que fugir.

Ou seja, a oferta da ditadura Aliyev pouco vale e, na prática, o que está ocorrendo é a limpeza étnica da região, como mencionado ontem. Limpeza étnica não é a mesma coisa que genocídio, mas ambos são crimes contra a humanidade

Além disso, há o irredentismo túrquico, que falarei mais adiante

Vamos analisar brevemente o que pode explicar a postura do governo armênio de Nikol Pashinyan aqui.

Com todas as pessoas que conversei na Armênia, sejam acadêmicos, sejam pessoas mais próximas do poder, há uma quase unanimidade: Pashinyan é muito bom da porta para dentro, na governança e na economia da Armênia, e muito problemático da porta pra fora, na segurança.

Desde que foi eleito em 2018, Pashinyan defendeu mais laços com o chamado Ocidente (Europa e EUA). Por conta disso, foi “jogado aos leões” pela Rússia, a quem acusa de terem traído a Armênia. Falo disso nesta thread de dez dias atrás, quando falei que uma nova guerra era questão de tempo, como de fato foi.

Pashinyan provavelmente espera que, em troca da integração de NK ao Azerbaijão, ele consiga normalizar as relações diplomáticas com seus dois vizinhos, Azerbaijão e Turquia.

Com essa normalização, ele consiga avançar na aproximação da Armênia com UE e EUA.

Principalmente, as derrotas armênias em 2020 e agora significariam, para ele e seus apoiadores, o fim da necessidade da presença militar russa na região. Desde o fim da URSS, a questão de NK e dos distritos previamente ocupados pela Armênia era vista como uma maneira de a Rússia ser a “garantidora da paz” na região, uma zona sob sua influência em antigo território soviético. Agora, não mais.

Caso esse projeto de longo prazo de Pashinyan se concretize, será uma perda para a Rússia.

Ele enfrenta desafios, entretanto.

1, o desafio doméstico. Para muitos, ele é um traidor, alguém que “vendeu” a Armênia. Tanto que, essa semana, seu partido foi derrotado nas principais eleições municipais do país.

Para outros, ele não é necessariamente um traidor, mas alguém que conduziu mal a situação. Por exemplo, pq não negociou com o Azerbaijão antes da guerra de 2020?

Parte da resposta está na resistência interna que ele sofre nesse tema.

Sendo justo, ele lida com dilema de balancear as fortes relações com a Rússia enquanto tenta construir opções. Eu mesmo, Filipe, no podcast, já fiz várias críticas a Pashinyan, por essa fraqueza no cenário internacional que custou milhares de vidas.

2, o desafio internacional. Um dos motivos da Armênia ter dependido da Rússia por três décadas é que a Armênia é um país incrustrado no Cáucaso, sem recursos naturais, com pouco “a oferecer”.

Enquanto isso, o Azerbaijão aumenta seu papel, e sua riqueza, internacional via seu gás natural do Cáspio e pela “lavagem” de petróleo russo.

Com a fortuna do gás, a ditadura do Azerbaijão também projeta a imagem internacional do país (GP de Fórmula 1, por exemplo) e suborna acadêmicos e políticos, a chamada Diplomacia do Caviar, vista aqui ou aqui.

Outra coisa que afasta a Armênia do chamado Ocidente é sua proximidade com o Irã, que expliquei na thread já citada. O fato de Azerbaijão ser aliado de Israel e Armênia ser aliada do Irã faz muitos políticos e acadêmicos dos EUA terem uma posição radicalmente pró-Azerbaijão. O discurso de Biden de “democracias versus autocracias” vai pro espaço nessas horas.

Finalmente, o terceiro desafio é o irredentismo túrquico. Existe o enclave de Nakhchivan, um território do Azerbaijão separado do resto do país pela Armênia.

O Azerbaijão, com apoio da Turquia, quer estabelecer o chamado Corredor de Zangezur, que não apenas vai conectar as duas partes do Azerbaijão como conectar todos os países túrquicos. A Organização dos Estados Túrquicos foi fundada em 2009, simbolicamente em Nakhchivan.

Ou seja, Pashinyan pode confiar num processo de normalização com vizinhos que querem um pedaço de seu território? No que causaria uma reação do Irã, inclusive?

Importante lembrar que Aliyev, diversas vezes, já negou a legitimidade da Armênia, afirmando que são “antigas terras do Azerbaijão”. Nisso ele é apoiado pelos nacionalistas de extrema-direita turcos, que hoje possuem a quarta maior bancada do parlamento turco e são aliados de Erdogan.

(Fim da thread)

2 Comentários

  • Avatar de iasminsilvadesa

    E uma guerra que vem acontecendo a bastante tempo com milhares de Armênios se aglomerando e causando revolução , onde no caso a solução seria entrar em acordo com outros países, e assim tentar um acordo com os terrorista ou construir uma guerra ainda maior para que a paz prevalessese dos dois lados.

  • Avatar de xistolima

    Esse cessar fogo costurado por Moscow configurou-se apenas uma rendição incondicional da Armêmênia, abrindo espaço para futuras campanhas expancionistas de uma aliança turca na região. Cabe-nos lembrar que a Armênia mostra-se cada vez mais isolada, uma vez que o Tratado de Segurança Coletiva entre Federação Rússia e Armênia mostrou-se claramente inoperante.

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